A Prostituição, o Banco de Dados e as Variáveis “Invisíveis”

Fonte imagem: http://simplesmenteassimj.blogspot.com.br/2014/01/go-to-india.html

Neste post resolvi falar sobre um tema um pouco fora de contexto. Esse assunto, no entanto, me vem de vez em quando à cabeça desde que li algumas reportagens que falavam sobre o aumento do número de pessoas contaminadas pelo HIV no Brasil. Decidi, portanto, descrever hoje um dos estudos mais interessantes com que já me deparei: “Sex workers and the cost of safe sex”, realizado na Índia.

Um motivo que torna este estudo especial é o fato de o banco de dados ter evidenciado algumas questões que tiveram de ser contornadas. Mas antes de falar sobre isso, vamos entender um pouco melhor as circunstâncias do estudo.

Sonegachi é um dos bairros de prostituição mais antigos e “bem-estabelecidos” de Calcutá. Essa região, segundo os autores, tem uma demanda estável de clientes porque fica próxima à Universidade de Calcutá. As ruas são estreitas o bastante para não permitirem a circulação de carros e possuem uma densidade grande de prédios entre 2 e 3 andares. Cada um desses prédios contém prostíbulos que oferecem uma gama muito variada de serviços e infra-estrutura. As garotas de programa quase sempre trabalham sob o comando de cafetões ou cafetinas e geralmente precisam pagar 50% da renda em troca de proteção ou aluguel. A prostituição em Sonegachi é um mercado muito competitivo. Em 1997, 4.000 garotas de programa trabalhavam em 370 prostíbulos atendendo 20.000 clientes por dia.

Com relação ao tema HIV, uma das razões pelas quais a contaminação pelo vírus é alta na região era porque que os homens tinham forte resistência ao uso da camisinha. A teoria econômica indica que, além de ser uma função da oferta e da demanda, o preço dos programas é determinado pelos atributos de cada garota. Como os homens geralmente preferiam não usar preservativos, era de se esperar que exigir sexo seguro tinha um impacto negativo sobre o preço do programa.

Assim, os autores buscavam com este experimento estimar essa perda na renda. Do ponto de vista de políticas públicas, essa estimativa é muito interessante pois o governo poderia, por exemplo, incentivar o uso de preservativos compensando de alguma forma as profissionais pelo decréscimo de seus ganhos. Note que, a situação aqui discutida, claramente não permitia monitoramento pois as negociações aconteciam, muitas vezes, entre quatro paredes.

Chegamos, então, a uma dificuldade desse estudo. Ao analisar o banco de dados, notou-se que algumas garotas com renda mais alta declaravam também que sempre obrigavam seus clientes a usarem camisinha. Significava isso, então, que a exigência, na realidade, não afetava a renda? Ou significa que as entrevistadas estavam mentindo? Provavelmente nem um nem outro! A explicação está nas variáveis não-observáveis. A beleza, por exemplo, é certamente algo que tem impacto sobre o preço do programa e, ao mesmo tempo, é uma variável imensurável, correto? Sim! Ora, como medimos a beleza? Mais ou menos bonita? A critério de quem? Esses atributos “invisíveis”, portanto, tiveram de ser levados em consideração na análise de preço.

Mas para lidar com tais dificuldades, existe a econometria. Neste experimento, os autores utilizaram variáveis instrumentais[1]. A solução achada foi usar um programa implementado pelo sistema de saúde no qual 12 garotas de programa foram recrutadas para educar e distribuir panfletos com informações sobre o uso de preservativos e os riscos do HIV[2]. Essa estratégia atendeu bem às exigências metodológicas, mas, para se certificarem de que as estimativas estavam próximas à realidade, uma outra estratégia de “enumeração” de cada garota também foi utilizada.[3] Usar dados em painel seria outra solução muito boa mas não foi utilizada pois os autores não tinham acesso a este tipo de informação.[4]

Resultados: o uso da camisinha diminuía a renda entre 66% e 79%! Agora, sabendo o grande impacto que a camisinha possui no preço do programa, as profissionais poderiam, por exemplo, fazer esforços conjuntos em forma de sindicatos para promover ações contra o sexo desprotegido. Os autores também sugerem que ações como essa poderiam ao mesmo tempo partir do governo que, no entanto, precisaria antes legalizar a profissão. Essas sanções, portanto, serviriam para compensar o impacto negativo da camisinha e diminuir a oferta de programas sem proteção.

Bibliografia:

GUPTA, Indrani, et al. Sex Workers and the Cost of Safe Sex: the compensating differential for condom use among Calcutta prostitutes. Journal of Development Economics. Vol. 71, p. 585-603. 2003.


[1] Variáveis instrumentais têm de obedecer a três regras básicas: (1) devem ter correlação com a variável endógena do modelo (neste caso, a variável que indica se a garota exige o uso ou não camisinha); (2) devem afetar a variável dependente (neste caso, o preço do programa) somente “através” da variável endógena; (3) e não podem pertencer ao modelo a ser estimado.

[2] A VI, neste experimento, era então uma variável indicando se a garota de programa recebeu o panfleto distribuído pelas educadoras.

[3] Neste processo, os pesquisadores listaram os bordéis de Sonegachi. A partir disso, uma amostra aleatória de cada prostíbulo foi selecionada e, em seguida, uma amostra aleatória de garotas de programa foi selecionada também. Cada garota dessa amostra recebeu um número de identificação que indicava a sequência em que cada uma foi localizada na rota dos pesquisadores.

[4] Estudos em que cada indivíduo é observado ao longo do tempo. A análise desse tipo de dado permite o controle das variáveis não-observáveis como beleza, charme etc.

Na luta contra a pobreza, são necessárias as condições?

O programa Bolsa Família já foi bastante elogiado e discutido nas esferas política e acadêmica como um programa público que comprovadamente contribui para a erradicação da pobreza.

Assim como o Progresa/Oportunidades, no México, o Bolsa Família entra na categoria dos programas de transferência condicionada de renda (ou Conditional Cash TransfersCCTs).  A ideia desses programas é a de que, tendo em vista as preferências das famílias de baixa renda (ou, para aqueles que gostam de economia, as curvas de indiferença), impor condições implica em incentivar certos comportamentos. Assim, uma família que dá pouco valor à educação, e que tenderia a pôr os filhos no mercado de trabalho em vez de mantê-los escola, pode inverter esse comportamento se incentivada economicamente –e, é claro, seja obrigada a manter os filhos na escola (a condição para receber o incentivo).

Aumentar a frequência escolar e diminuir o trabalho infantil são dois grandes objetivos de CCTs. O valor da transferência influenciará quais famílias irão aderir ao programa e quais crianças serão beneficiadas. Manter uma criança de 5 anos na escola, por exemplo, é mais barato do que um adolescente de 15, pois este último é capaz de ter uma renda maior no mercado de trabalho. Assim, o valor da transferência depende de decisões de política que determinam quem é o público-alvo do programa. E essa discussão vai longe.

Em contrapartida, o novo hot topic das discussões de economia e desenvolvimento são os Unconditional Cash Transfers (UCTs), ou seja, as transferências incondicionais. Um estudo realizado no Quênia entre 2011 e 2013 (SHAPIRO e HAUSHOFER, 2013), por exemplo, analisou os impactos das transferências feitas pela organização GiveDirectly¸ fundada por um grupo de economistas das Universidades de Harvard e MIT. Essas transferências, que não estavam atreladas a nenhuma condição, eram de pelo menos o dobro da média de consumo mensal dos domicílios e feitas por meio de um sistema de celular chamado M-Pesa.

Os autores usaram experimentos de atribuição aleatória e fizeram o sorteio dos beneficiários em dois níveis: o das vilas e o dos domicílios. Também sortearam o gênero do beneficiário (esposa vs. marido), a periodicidade (transferência em prestações vs. uma única transferência) e o valor do pagamento (US$ 404 vs. US$ 1.520). Alguns dos resultados foram: os domicílios beneficiados apresentavam níveis mais altos de consumo e poupança e, surpreendentemente, os gastos com álcool e cigarro não aumentaram; os níveis de cortisol (indicador de stress) baixaram mais entre os beneficiários; e aqueles que receberam uma única transferência investiram mais em bens duráveis do que aqueles que receberam os benefícios em prestações.

A escolha do programa de transferência de renda mais apropriado (com ou sem condicionalidades) depende das prioridades da política pública. Uma vantagem dos UCTs é que eles são menos custosos de se gerir e monitorar. Por outro lado, os CCTs tendem a ter um impacto mais duradouro por envolver melhoras cumulativas em educação e saúde.

Bibliografia

DAS, J., QUY-TOAN, D., ÖZLER, B. Reassessing Conditional Cash Transfer Programs. World Bank Research Observer. Vol. 20 (1), p. 57-80, 2005.

HAUSHOFER, J., SHAPIRO, J., Household Response to Income Changes: Evidence from an Unconditional Cash Transfer Program in Kenya. GiveDirectly Program, 2013.

São Pedro: Traga a Chuva!

Apesar do grande potencial hídrico do Sudeste do Brasil, este ano ficou marcado por uma crise no abastecimento de água que parece ainda estar só no começo. O fornecimento de água foi afetado devido à falta de planejamento mas também por episódios climáticos.

O que muitos não sabem é que, além de ser fonte de água, a chuva já serviu também como ferramenta de avaliação. Isto mesmo! A professora da Universidade de Brown, Christina Paxson (1992) usou índices de precipitação para investigar o comportamento econômico de famílias de baixa renda na Tailândia. Ela percebeu que a chuva poderia representar a variabilidade da renda dos domicílios. Isto porque as famílias investigadas viviam da plantação de arroz, que depende bastante de água. A idéia de Paxson foi testar a “Hipótese da Renda Permanente”, ou seja, a hipótese de que o padrão de consumo das pessoas em um determinado momento não é definido pela renda daquele mesmo momento mas sim pela renda que elas esperam ter durante toda a vida.

No caso das famílias produtoras de arroz, as chuvas representam choques positivos na renda, mas esperava-se que eles guardassem esse dinheiro adicional advindo da chuva segundo a Hipótese da Renda Permanente. Na pesquisa social é sempre um desafio distinguir as relações causais; mas neste caso, por a chuva ser uma variável externa ao modelo, o estudo fica muito claro e “limpo”. Os resultados de Paxson mostram que os indivíduos de fato poupam grande parte da renda transitória. Esta conclusão é importante pois indica que o bem-estar de famílias pobres provavelmente não é prejudicado pelas oscilações na renda.

Adotando uma lógica parecida, Yang e Maccini (2009) desenvolveram um estudo na Indonésia em que usaram a chuva como variável para investigar os efeitos de eventos extraordinários ocorridos durante a fase da primeira infância. A hipótese dos pesquisadores é que esses choques afetariam o desenvolvimento pessoal. Os resultados mostraram que as mulheres que nasceram em anos de muita chuva vieram a ter padrões socioeconômicos mais altos durante a vida adulta. Essas mulheres também autodeclararam estados de saúde melhores, eram 0,57 centímetro mais altas e frequentaram a escola durante mais tempo do que aquelas que nasceram em anos com níveis normais de precipitação, líquidos de outras causas.

Este padrão, no entanto, não foi encontrado entre os homens, ou seja, anos chuvosos no nascimento não estão associados a modificações nos níveis socioeconômicos dos homens estudados. Isto indica, portanto, um viés de gênero que precisa ser explicado. Além de ressaltar a importância de fatos da infância sobre a trajetória socioeconômica das pessoas, este estudo destaca os fatores externos improváveis que a afetam para que possamos isolá-los e mensurar seu impacto.

Fascinante, não?

Bibliografia
PAXSON, C. Using Weather Variability to Estimate the Response of Savings to Transitory Income in Thailand. American Economic Review. Vol. 82(1), p. 15-33, 1992.
YANG, D., Maccini, S. Under the Weather: Health, Schooling, and Economic Consequences of Early-Life Rainfall. American Economic Review. Vo. 99(3), p. 1006-1026, 2009.

comunicar avaliação para que seja lida, entendida e utilizada

Já falei aqui sobre a beleza dos dados e como a espacialização nos permite entender fenômenos que nos passariam despercebidos de outra forma, mas nunca falei de como a visualização de dados pode ser utilizada em avaliação.

Como escreveu Christie, “o uso de avaliação é a área mais discutida entre os avaliadores” e é uma questão tão antiga como a própria disciplina. Já se escreveram milhares de linhas sobre o tema e, por isso, em 1986 Cousin e Leithwood decidiram fazer um sumário dos motivos mais referidos como influenciadores do uso das avaliações. Em 2009 Johnson e colegas decidiram replicar o experimento.

Interessante notar que, embora os motivos identificados sejam praticamente os mesmos nos dois períodos, a preponderância de cada um variou. Flagrante exemplo é o da qualidade da comunicação, que passou de oitava caraterística mais citada em 1985 para segunda em 2005.

Mas desde 2005 muita coisa voltou a mudar. Em 2005 o Google tinha apenas começado a tornar-se algo mais que um mero site de pesquisa e tinha acabado de lançar o Gmail e o Maps; o Facebook ainda se chamava The Facebook. Desde 2005 vimos surgir várias das soluções tecnológicas de comunicação sem as quais não vivemos hoje: Youtube, Twitter, Dropbox, Evernote e Instagram. Em 2007, o Iphone revolucionou o mercado da comunicação móvel e o Kindle começou a convencer-nos de que se calhar há outras formas de ler. E o que pensou quando lhe disseram que o futuro era uma espécie de híbrido entre telefone e computador que não seria nem um nem outro? Hoje chamamos-lhe iPad. Mas eu entendi que algo tinha mudado quando os meus pais me pediram para ser amigo deles no Facebook.

A forma como comunicamos e absorvemos informação mudou drasticamente: temos acesso a cada vez mais informação mas temos cada vez menos tempo para dedicar a cada pedaço de informação. Será que o tradicional relatório de avaliação de 100-200 páginas ainda é a melhor forma de comunicar os resultados e recomendações de uma avaliação? É uma boa opção, mas provavelmente não é suficiente.

O público-alvo da avaliação não é uma pessoa, mas um grupo amplo com responsabilidades e interesses distintos: alguns querem acompanhar todo o trabalho de avaliação, outros preferem esperar pelo final do trabalho, alguns pretendem ler apenas os capítulos que entendem mais relevantes. É necessário, então, comunicar de forma adequada a cada grupo porque quanto maior e diverso for o grupo de leitores, maior a probabilidade de que a avaliação será utilizada.

Porém, tão ou mais relevante que ser lido é ser entendido. Quem trabalha com análise de dados sabe como por vezes é difícil comunicar algo que parece óbvio. Como Evergreen refere: “um gráfico é apenas o resultado do processo que ocorre no cérebro da pessoa que lê a informação crua”, mas esse processo nem sempre é óbvio – ou feito de forma correta.

A usabilidade de uma avaliação depende diretamente da sua legibilidade e do fato de ela ser entendida pelos diferentes leitores e isso pode ser alcançado de formas até menos rebuscadas do que o que normalmente se pensa: um trabalho de paginação e a transformação de uma tabela em um gráfico de barras, por exemplo, podem ser suficientes para aumentar o número de leitores e garantir que eles entendem o que lhes é dito. Ainda assim, e para quem quer ousar um pouco mais, há hoje várias soluções acessíveis e até gratuitas para mostrar mais que palavras. Para começar, e se se interessar por visualização de redes, porque não começar pelo NodeXL, por exemplo?