Novas tecnologias no espaço urbano: os casos do Pokémon Go e do Waze

Logo depois do lançamento do aplicativo Pokémon GO em São Paulo, tornou-se comum ver grandes grupos de pessoas congregadas em marcos da cidade com smartphones na mão, estacionárias salvo os dedos mexendo na tela, furiosamente lançando pokébolas aos Pokémons “selvagens”. Esta cena curiosa tem se reproduzido no mundo inteiro, com milhões de usuários saindo das suas casas para mergulhar num mundo virtual, imbuindo espaços públicos com novos significados como campos de batalha, lojas de suprimentos ou o habitat de certas criaturas. Embora os “treinadores” estejam intensamente focados nesse universo artificial, o fenômeno do Pokémon GO transcende o virtual e faz parte de uma discussão maior sobre o impacto de novas tecnologias sobre antigas questões como espaço público e estigmatização.


No caso do Pokémon GO, nos Estados Unidos foi notado que os Pokémon estavam concentrados em bairros mais centrais e/ou ricos. Devido ao alto nível de segregação residencial nas cidades americanas, isso significa que, geralmente, bairros povoados por minorias raciais têm menos acesso ao jogo. Uma explicação é que os desenvolvedores distribuíram os Pokémon segundo um mapa para um aplicativo anterior que utilizava os locais mais frequentados pelos usuários, que aparentemente tendiam a ser mais ricos e velhos. Mesmo assim, é importante considerar como um jogo aparentemente inócuo se relaciona com questões de segregação e direito à cidade.

Como observam Angelique Harris e Jonathan Wynn, sociólogos da Marquette University (EUA), há vários casos de pessoas confundidas com criminosos ao andarem por seus bairros por serem negros, o que pode resultar em confrontos com policiais desconfiados. De fato, essa situação já ocorreu com um jogador de Pokémon GO cujos comentários públicos ecoaram os apelos dentro da comunidade afro-americana para que se tome cuidado ao usar o aplicativo.

Por outro lado, a falta de Pokémon em bairros afro-americanos discutivelmente reflete preconceito geográfico que favorece bairros privilegiados ou pelo menos nos quais jogadores brancos não se sentiriam desconfortáveis. É preocupante que, intencionalmente ou não, a atual versão do aplicativo esteja reproduzindo a segregação urbana, mas o seu sucesso impressionante em tornar os usuários exploradores do meio urbano e em promover interações espontâneas também representa uma oportunidade de superar barreiras classificatórias, como classe e aparência.

Esse mesmo potencial se aplica no contexto de metrópoles brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, onde o Pokemon GO está conspicuamente ausente nos bairros pobres; mas o papel de novas tecnologias no debate de questões sociais como segurança pública não se restringe ao mundo de criaturas fantásticas. O Waze, um aplicativo social de tráfego com seis milhões de usuários no Brasil, recentemente adicionou uma função que utiliza dados do Disque-Denúncia para alertar os motoristas cariocas que estão perto de uma de 25 “áreas de risco de crime” e garantir que as rotas evitem ruas denominadas “perigosas”.

Essa função, por enquanto exclusiva do Rio, chega um ano depois da morte de uma mulher que foi orientada pelo Waze a entrar no bairro do Caramujo, em Niterói. Evidentemente, essa informação pode salvar vidas, mas não está claro se é possível fornecer esse aviso sem estigmatizar as comunidades de “alto risco”. Consciente desse potencial, o Waze decidiu que os nomes desses lugares seriam visualizados apenas se o usuário colocar um deles como destino, ou se entrar em um deles. Para um morador da Rocinha, contudo, esse atributo certamente contribui para a marginalização: “Quando você mapeia parte da cidade e diz que uma parte é perigosa e outra não é perigosa, você está excluindo as pessoas…A gente não tem nenhum relato de pessoas que sofreram agressões por terem entrado errado na Rocinha por causa de aplicativo”. Neste sentido, o Waze representa uma abordagem baseada em dados para antecipar o crime, mas também pode influenciar a maneira pela qual moradores cariocas vivenciam a sua própria cidade e até aprofundar a polarização espacial do Rio de Janeiro.

Seja no momento de caçar Pokémon ou se deslocar pela cidade, novas tecnologias móveis oferecem maneiras inovadoras de perceber os arredores e simultaneamente estimulam debates familiares sobre integração social ou sua ausência. É interessante pensar também como a produção coletiva de dados pode auxiliar os governos na melhoria dos serviços públicos, como a manutenção de praças de parques, o policiamento direcionado, etc., ou ainda na identificação de carências específicas de certos bairros, aproveitando os dados de crowdsourcing para construir um governo mais eficaz e mitigador das desigualdades urbanas por meio do monitoramento participativo. Só o tempo dirá em que direção caminharemos.

Questões Censitárias e o “Genocídio Estatístico”: o caso das populações indígenas no Chile

A maioria dos países adota há anos o censo demográfico como instrumento para conhecer as diferentes características de sua população, tais como distribuição de habitantes por gênero, cor e etnia.  Além de fornecer este retrato estatístico, a realização periódica do censo também permite monitorar a composição da população ao longo dos anos, facilitando a identificação de grandes mudanças demográficas, como ocorreu no Chile entre os anos de 1992 e 2002.

No censo realizado em 1992, 10,3% da população chilena se autodeclarou indígena. Entretanto, tal porcentagem foi amplamente questionada à época, na medida em que o questionário aplicado considerou apenas as três etnias oficialmente reconhecidas: Mapuche, Aymara e Rapa Nui. Diante disso, os povos cujas etnias não foram contempladas no censo não compuseram as estatísticas, distorcendo a real dimensão dos povos indígenas no país andino.

Em 1993, depois de sancionada a Ley Indígena, cinco novas etnias passaram a ser oficialmente reconhecidas. No entanto, ao invés de registrar o aumento esperado, o censo realizado em 2002 apresentou uma redução no número de pessoas que declararam pertencer a alguma das oito etnias; após 10 anos, o Chile viu seus povos indígenas cair a apenas 4,6% da população.

O fato curioso é que no período compreendido entre ambos os censos não foram reportados quaisquer casos de genocídios, epidemias, migrações em massa ou outro fator que pudesse justificar tamanha redução em um curto espaço de tempo. Tal episódio passou a ser então reconhecido como um genocídio meramente estatístico.

O que levou a essa drástica redução, afinal?

Ao investigar a raiz do problema, conclui-se que seu fato gerador estava no modo de perguntar, ou seja, na formulação da questão aplicada pelo censo. Enquanto em 1992 a pergunta utilizada foi “se você é chileno, considera-se pertencente a alguma das seguintes culturas?”, em 2002 a questão foi modificada para “você pertence a algum dos seguintes povos originários ou indígenas?”.

O problema da alteração encontra-se no fato de que muitos povos indígenas possuem suas próprias definições sobre pertencimento que muitas vezes diverge da percepção do indivíduo sobre sua etnia. Portanto, podem existir pessoas que possuem ascendência indígena, seguem culturas e tradições indígenas, se reconhecem como indígenas, vivem dentro ou ao redor de comunidades indígenas, possuem as mesmas necessidades da comunidade a qual sentem pertencer, mas não são reconhecidos pelo povo como parte dele.

Mas qual é o problema do “genocídio estatístico”?

A questão indígena na América Latina é tratada com uma atenção especial pelos governos nacionais e organismos internacionais. Em termos de políticas públicas e garantias de direitos fundamentais, o conceito de “indígena” está mais diretamente relacionado ao sentimento de pertencimento do indivíduo à cultura e à etnia do que às determinações e regras de comunidades específicas. Nesse sentido, ao considerar os resultados obtidos no censo realizado em 2002, uma parcela significativa da população pode ter tido seus direitos mitigados ou, ainda, ter sido excluída de planejamentos e implementações de políticas públicas voltadas exclusivamente aos povos indígenas.

Considerando as implicações que possivelmente decorreram do resultado do último censo, a questão foi devidamente alterada para o censo realizado em 2012, de forma a abranger todos aqueles que se consideravam indígenas. Diante da pergunta “você se considera pertencente a algum povo indígena?”, 11,1% da população chilena assim se declarou. Contudo, é preciso destacar que devido a problemas metodológicos – exclusão de 10% da população da aplicação dos questionários – os resultados desse novo censo foram cancelados em 2014, voltando a viger aquele realizado em 2002.

O que podemos aprender com esse caso?

O caso do Chile não é o único registrado nesse sentido, mas ilustra perfeitamente as consequências que uma pergunta mal planejada pode trazer a uma pesquisa, seja ela censitária ou não. Antes de elaborar um questionário, um pesquisador precisa se preocupar, sobretudo, em conhecer bem o objetivo da pesquisa, a região na qual ela será aplicada e as características de seus entrevistados, pois caso contrário, o resultado obtido pode distorcer a realidade e as consequências podem ser irreparáveis.

Fontes:

http://www.ine.cl/canales/chile_estadistico/estadisticas_sociales_culturales/ etnias/pdf/estadisticas_indigenas_2002_11_09_09.pdf

http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=39334376

http://www.mapunet.org/documentos/mapuches/Ref_met_cen_1992-2002.pdf

http://blogs.iadb.org/y-si-hablamos-de-igualdad/2015/03/19/como-prosa-y-politica-pueden-reducir-la-poblacion-indigena/

hashtag somos todos classe média

Deixe-me adivinhar: você respondeu que pertence à classe média. Como é que adivinhei? Bem, as probabilidades estavam do meu lado, e em 3 das 5 alternativas é referido um sub-estrato médio; o fato de estar a ler este blogue também indicia que você tem um grau de instrução relativamente elevado – e vários estudos apontam que educação e renda estão correlacionados, etc.

Mas não, na verdade se acertei foi simplesmente porque a maior parte das pessoas acha que é de classe média. Isso deve-se a um viés inerente à autopercepção de classe que, como sucede por vezes com as percepções, nem sempre corresponde perfeitamente à realidade. No caso da percepção de classe, isto verifica-se no Brasil, na Argentina e até um pouco por todo o mundo.

Para ajudar a explicar este viés, podemos adaptar ligeiramente o conceito de Privação Relativa, que o sociólogo Robert K. Merton desenvolveu para explicar o desvio social. Neste sentido, a auto percepção de classe social depende sobretudo da posição social relativa às pessoas que cada um vê como mais próximos e tende a enviesar-se ainda mais por pensarmos popularmente a divisão de classes como pobres, classe média e ricos1. Por isso, é natural que alguém que esteja entre os 10% com mais rendimentos ache que não é realmente rico.

Até porque haverá sempre alguém que parece ter mais recursos que nós: “como é que eu posso ser considerado rico se eu nem tenho um helicóptero/não moro em uma cobertura/não troco de carro todos os anos/não moro em uma cobertura/não tenho um helicóptero/não tenho um jato privado/não tenho uma ilha/etc”. Da mesma forma, alguém que faça parte dos 10% mais pobres entre as pessoas que possuem rendimentos considerem que não são assim tão pobres porque “afinal sempre têm rendimento/ vão tendo comida na mesa/não moram na rua/etc”.

Entende-se, então, já agora, por que é que tanta gente se surpreendeu – e se indignou – quando a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) afirmou que, em 2012, do estrato médio (“classe média”) faziam parte as pessoas com renda per capita entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00 – talvez por isso, em 2014, a SAE passou a definir as classes a partir da renda domiciliar total.

Mas, apesar de pensar classes olhando apenas o rendimento é coisa de perturbar cientistas sociais por desconsiderar dimensões como status ocupacional, patrimônio e capitais social e cultural, por exemplo, a crescente difusão do termo Classe Média tem sido muito útil para o discurso político em todo o mundo: se toda a gente é classe média, dirigir a retórica seja para uma “classe média emergente” ou para uma “classe média que carrega o país nos ombros” tende a conquistar cada vez mais espaço aos temas clássicos como a educação, saúde e pobreza.

Como diria o britânico John Prescott: “agora somos todos classe média”.


1. Na verdade, são estratos, definidos por renda, e não classes, definidas por posição na estrutura social, mas vamos adotar a linguagem corrente para facilitar o entendimento.