O campo, no campo

Em 2013, nossa colega de trabalho Camila Cirillo fez um relato sobre a vivência de um dia de campo em assentamentos precários no Espírito Santo. Aquela foi também a minha primeira experiência como pesquisadora e foi também meu primeiro contato com outra realidade social que não a minha, na época, ainda como estagiária na Plan.

Quatro anos depois, tive a oportunidade de coordenar a pesquisa do Estudo de Linha de Base do Projeto Pró-Semiárido, projeto assinado em parceria entre o Governo da Bahia e o FIDA – Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, por intermédio da Secretaria de Desenvolvimento Rural do Estado da Bahia – SDR, tendo a CAR – Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional como executora.  O objetivo do Pró-Semiárido é reduzir a pobreza rural por meio da geração de renda, aumentar a produção, as oportunidades de trabalho agrícola e não-agrícola e desenvolver o capital humano e social, dando especial atenção a mulheres e jovens.

O projeto iniciou suas atividades em 2015, com foco em comunidades rurais, quilombolas, fundo de pasto e indígenas de 32 municípios do Estado da Bahia.  A Plan foi contratada para realizar o Estudo da Linha de Base, por isso visitou 388 comunidades (beneficiárias e não beneficiárias) e aplicou mais de 2.500 questionários com as famílias residentes das comunidades espalhadas por 32 municípios baianos.

O desafio foi grande, mas trouxe um aprendizado ainda maior: com uma equipe de 16 pesquisadores, no dia 5 de outubro saímos de Petrolina rumo a Juazeiro para dar início à aplicação dos questionários. O primeiro obstáculo foi a logística, pois todas as comunidades ficam muito distantes do centro de suas cidades, por caminhos às vezes sem infraestrutura nenhuma e não mapeados na internet. Em algumas localidades, o carro não conseguia chegar em seu destino pois a região dominada pelos areais fazia com que o motor perdesse força. Em muitas ocasiões, o jeito era deixar os carros e seguir a pé.

Uma vez na comunidade, para obtermos uma amostra aleatória, fazíamos a contagem de todas as casas do local para podermos estimar o salto entre as residências. Por exemplo, se tivéssemos de cumprir um total de 7 questionários na comunidade e esta apresentasse 30 casas, nosso salto seria de 4 casas. Assim, escolhíamos aleatoriamente uma casa para começar a pesquisa, pulávamos as 4 próximas casas da sequência e aplicávamos a pesquisa novamente na casa de número “5”.

Mas não foi possível seguir essa metodologia em todas as comunidades, uma vez que algumas possuíam casas muito afastadas umas das outras, o que impossibilitava a contagem manual. Nesses casos, procurávamos o líder comunitário ou o agente de saúde para obter o número de domicílios da região. E aí, para a aplicação dos questionários, cada pesquisador se virava como dava. Pegava carona de moto, de jegue…

Apesar das dificuldades de uma pesquisa de campo desse tamanho, poder conhecer a região semiárida da Bahia e seus moradores foi maravilhoso. A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi “se é tão difícil assim pra gente chegar, imagina o poder público… essas pessoas devem estar esquecidas…” e infelizmente eu não estava tão errada assim. Além das condições climáticas que afetam a população dessa região, faltam serviços básicos como saúde, transporte e segurança pública.

“Aqui a gente não acredita em político, aqui a gente conta com a fé. Porque só Deus olha por nós…”

 Morando na capital do Estado de São Paulo, é bem difícil me imaginar dividindo espaço com cabras, bodes, galinhas e porcos. No campo, a impressão que tive foi de harmonia. Além da paisagem característica do semiárido, ficou em minha memória também o seu som: o sino da cabra que orientava seu rebanho.

No questionário aplicado, perguntamos sobre as condições socioeconômicas das famílias, o tamanho de seu rebanho, produção e venda agropecuária, sua renda anual e estratégias de enfrentamento da seca. As respostas, mesmo quando amargas, não eram em tom de lamento e sim de resignação, o que, confesso, me deixava triste.

 “Ano passado eu perdi tudinho, a seca me levou tudo, não vingou nenhuma plantação.”

 “A seca castiga, moça, mas fome nós não passa não… Aqui todo mundo se ajuda, a gente troca entre nós, compra quando dá… Não é sempre que tem de tudo no prato, mas pelo menos um ovo frito no almoço nós tem.”

 “Eu tenho aqui meus cabritos mas eu não gosto de matar os bichinhos não, eu só faço isso quando não tem outro jeito mesmo”.

 “Graças a Deus, sede a gente não passa mais. Tem época que os bichos sofrem, mas aqui em casa não falta um copinho de água. Mas tem que economizar…”.

 O que mais me chamou a atenção foi a hospitalidade de todos. Mesmo na presença de desconhecidos, as famílias eram sempre muito atenciosas. Tinham ânsia por serem ouvidas e não tiravam o sorriso do rosto. Mulheres e homens marcados pelo sol que enganava suas idades abriam as portas de suas casas e nos ofereciam tudo o que estava aos seus alcances: água, café, almoço, estadia.

“Aqui a gente tem pouco, mas o pouco que tem dá pra dividir. Não me faça essa desfeita, moça!”.  E foi assim que eu saí com uma melancia nos braços.

Conhecer essas pessoas e suas realidades foi uma experiência revigorante, dessas que nos dão a sensação de que, de fato, fazemos parte do mundo. Como pesquisadora, fico grata por ter tido a oportunidade de vivenciar a prática do campo.

Para finalizar, gostaria de deixar registrado também que além de toda bagagem que adquiri nesse campo, também assisti um pôr do sol incrível, além de constatar que Luiz Gonzaga tinha razão: não há, ó gente, ó não, luar como esse do Sertão….

 

Tia, entendeu ou quer que eu desenhe?

Para aqueles que acompanham o trabalho da Plan não deve ser novidade o fato de que nós avaliamos projetos que tratam de vários temas e envolvem públicos bastante diversificados. A lista de perfis profissionais que participaram dos nossos trabalhos de campo já incluiu: empresários, trabalhadores de chão de fábrica, pequenos agricultores, proprietários de grandes fazendas, coordenadores de projetos sociais, beneficiários desses projetos e por aí vai.

Além da diversidade de posições ocupacionais e estratos de renda, as idades também são muito variadas e incluem até crianças. Já trabalhamos com projetos cujos beneficiários estão cursando o Ensino Infantil (até 6 anos de idade) e crianças que estão atravessando esse processo tão crítico que é a alfabetização (1º ano do Ensino Fundamental).

Quando as crianças são justamente o centro de um projeto, como podemos envolvê-las no trabalho de campo? Como entrevistar essas pessoas que estão desenvolvendo as diversas formas de se expressar?

Orientados por nossa consultora e educadora Gisela Wajskop, que se inspirou em estudos da Sociologia da Infância (Pinto & Sarmento, 1997, 1999; Corsaro, 2011), realizamos conversas em grupo (“grupos focais”) com crianças utilizando técnicas de observação seguidas de atividades de desenho. As crianças utilizam formas específicas de representação e simbolização do mundo que ultrapassam os limites da linguagem codificada em fala e texto. Se quisermos entender o que pensam e lhes darmos voz, o discurso adulto de perguntas e respostas estruturadas pode não ser o meio mais eficaz. As conversas com crianças requerem uma abordagem própria, ajustada a sua visão de mundo curiosa, especulativa, aberta, imagética, daí a opção pela utilização do recurso visual.

Os desenhos são meios riquíssimos de comunicação que podem incluir não somente objetos, mas também movimentos, sons e sentimentos. Ao tentar representar pessoas ou lugares, por exemplo, as crianças desenham o que elas sabem, ou seja, elas mostram uma versão do que elas veem. Ainda que enfrentem dificuldades para incluir em seus desenhos técnicas mais regradas, como a perspectiva, elas inventam soluções para representar objetos com três dimensões (Anning, 1997). Essas soluções não são imediatamente perceptíveis para o adulto treinado na convenção mas fazem pleno sentido quando descritas pelas próprias crianças. Em um mundo dominado pela linguagem padronizada e normatizada, as crianças entram em um território muito mais livre ao trabalhar com materiais de linguagem expressiva, como papel, lápis, giz de cera ou até massinha de modelar.

O desenho acima mostra o entendimento de um aluno de 7 anos sobre um aplicativo de apoio ao letramento utilizado por sua turma. A primeira versão desse aplicativo contava a história do Motogato, um entregador de pizzas que era ajudado por seu chefe, o Sr. Cachorrão, para escrever o endereço dos seus clientes. A criança destaca a expressão angustiada do Motogato tentando navegar pelo universo urbano congestionado chegando corretamente ao seu destino com as informações que lhe são passadas —lugar semelhante ao do próprio aluno face ao desafio de dominar o código da escrita no processo de alfabetização.

Já a ilustração abaixo, criada por uma aluna de 5 anos, reconta simbolicamente a história narrada no livro “Menina Bonita do Laço de Fita”, de Ana Maria Machado. No desenho, a aluna fundiu na mesma representação as características da protagonista do livro e também do coelho, a outra personagem, que não só se apaixona por ela mas quer poder ser como ela.

Elaborado durante a mesma atividade de leitura do livro “Menina Bonita do Laço de Fita”, o desenho abaixo chama a atenção para o direcionamento da atenção da criança. Embora não tenha reproduzido elementos que surgiram na história do livro, o aluno mostrou curiosidade e capacidade de observação ao desenhar elementos do ambiente escolar onde estávamos, incluindo até o meu tripé, que usei para apoiar a câmera filmadora e registrar toda a entrevista. Por mais interessante que pudesse lhe parecer o livro, a presença de um pesquisador estranho e seus instrumentos sofisticados de trabalho, totalmente fora de contexto na rotina de uma escola no interior do Ceará, decerto lhe chamou mais a atenção do que a história de um coelho que se apaixonava por uma menina. Não se pode tirar a razão desse menino de querer destacar essa descoberta em seu desenho.

Os desenhos, portanto, ao fazer despertar representações usando formas e cores podem revelar experiências das crianças com os livros e materiais didáticos, por exemplo, ou até mesmo suas opiniões e sentimentos em relação ao ambiente escolar ou familiar. Ademais, a simples observação das crianças ao criarem seus desenhos pode revelar muitas questões ligadas ao seu desenvolvimento. A intimidade com o lápis e giz de cera pode ser índice de habilidades motoras enquanto que o compartilhamento do material e interações entre as crianças durante a atividade também expõem habilidades sociais e emocionais.

Fontes citadas:

ANNING, Angela. Drawing Out Ideas: Graphicacy and Young Children. International Journal of Technology and Design Education 7. p. 219 – 239, 1997.

CORSARO, W. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011

PINTO, M. & SARMENTO, M. J. (Org.). As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando campos. In: As crianças: contexto e identidades. Braga, Portugal: Centro de Estudos da Criança, 1997.

WAJSKOP, Gisela. Linguagem Oral e Brincadeira Letrada nas Creches. Educ. Real., Porto Alegre, 2017.

Novas tecnologias no espaço urbano: os casos do Pokémon Go e do Waze

Logo depois do lançamento do aplicativo Pokémon GO em São Paulo, tornou-se comum ver grandes grupos de pessoas congregadas em marcos da cidade com smartphones na mão, estacionárias salvo os dedos mexendo na tela, furiosamente lançando pokébolas aos Pokémons “selvagens”. Esta cena curiosa tem se reproduzido no mundo inteiro, com milhões de usuários saindo das suas casas para mergulhar num mundo virtual, imbuindo espaços públicos com novos significados como campos de batalha, lojas de suprimentos ou o habitat de certas criaturas. Embora os “treinadores” estejam intensamente focados nesse universo artificial, o fenômeno do Pokémon GO transcende o virtual e faz parte de uma discussão maior sobre o impacto de novas tecnologias sobre antigas questões como espaço público e estigmatização.


No caso do Pokémon GO, nos Estados Unidos foi notado que os Pokémon estavam concentrados em bairros mais centrais e/ou ricos. Devido ao alto nível de segregação residencial nas cidades americanas, isso significa que, geralmente, bairros povoados por minorias raciais têm menos acesso ao jogo. Uma explicação é que os desenvolvedores distribuíram os Pokémon segundo um mapa para um aplicativo anterior que utilizava os locais mais frequentados pelos usuários, que aparentemente tendiam a ser mais ricos e velhos. Mesmo assim, é importante considerar como um jogo aparentemente inócuo se relaciona com questões de segregação e direito à cidade.

Como observam Angelique Harris e Jonathan Wynn, sociólogos da Marquette University (EUA), há vários casos de pessoas confundidas com criminosos ao andarem por seus bairros por serem negros, o que pode resultar em confrontos com policiais desconfiados. De fato, essa situação já ocorreu com um jogador de Pokémon GO cujos comentários públicos ecoaram os apelos dentro da comunidade afro-americana para que se tome cuidado ao usar o aplicativo.

Por outro lado, a falta de Pokémon em bairros afro-americanos discutivelmente reflete preconceito geográfico que favorece bairros privilegiados ou pelo menos nos quais jogadores brancos não se sentiriam desconfortáveis. É preocupante que, intencionalmente ou não, a atual versão do aplicativo esteja reproduzindo a segregação urbana, mas o seu sucesso impressionante em tornar os usuários exploradores do meio urbano e em promover interações espontâneas também representa uma oportunidade de superar barreiras classificatórias, como classe e aparência.

Esse mesmo potencial se aplica no contexto de metrópoles brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, onde o Pokemon GO está conspicuamente ausente nos bairros pobres; mas o papel de novas tecnologias no debate de questões sociais como segurança pública não se restringe ao mundo de criaturas fantásticas. O Waze, um aplicativo social de tráfego com seis milhões de usuários no Brasil, recentemente adicionou uma função que utiliza dados do Disque-Denúncia para alertar os motoristas cariocas que estão perto de uma de 25 “áreas de risco de crime” e garantir que as rotas evitem ruas denominadas “perigosas”.

Essa função, por enquanto exclusiva do Rio, chega um ano depois da morte de uma mulher que foi orientada pelo Waze a entrar no bairro do Caramujo, em Niterói. Evidentemente, essa informação pode salvar vidas, mas não está claro se é possível fornecer esse aviso sem estigmatizar as comunidades de “alto risco”. Consciente desse potencial, o Waze decidiu que os nomes desses lugares seriam visualizados apenas se o usuário colocar um deles como destino, ou se entrar em um deles. Para um morador da Rocinha, contudo, esse atributo certamente contribui para a marginalização: “Quando você mapeia parte da cidade e diz que uma parte é perigosa e outra não é perigosa, você está excluindo as pessoas…A gente não tem nenhum relato de pessoas que sofreram agressões por terem entrado errado na Rocinha por causa de aplicativo”. Neste sentido, o Waze representa uma abordagem baseada em dados para antecipar o crime, mas também pode influenciar a maneira pela qual moradores cariocas vivenciam a sua própria cidade e até aprofundar a polarização espacial do Rio de Janeiro.

Seja no momento de caçar Pokémon ou se deslocar pela cidade, novas tecnologias móveis oferecem maneiras inovadoras de perceber os arredores e simultaneamente estimulam debates familiares sobre integração social ou sua ausência. É interessante pensar também como a produção coletiva de dados pode auxiliar os governos na melhoria dos serviços públicos, como a manutenção de praças de parques, o policiamento direcionado, etc., ou ainda na identificação de carências específicas de certos bairros, aproveitando os dados de crowdsourcing para construir um governo mais eficaz e mitigador das desigualdades urbanas por meio do monitoramento participativo. Só o tempo dirá em que direção caminharemos.

Homotransfobia: por que intervir?

Na última semana a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República divulgou o balanço anual de denúncias recebidas pelo Disque 100 em 2015 (http://www.disque100.gov.br/). Entre 2014 e 2015, houve um aumento de 2% no número total de denúncias de violações de direitos humanos. Considerando-se apenas a violência cometida contra a população LGBT, o número de denúncias no mesmo período cresceu 94%; discriminação, violência psicológica e violência física estão entre os tipos mais recorrentes de violações sofridas por esse grupo1.

De acordo com a SDH, apesar do aumento, o encaminhamento dessas denúncias ainda é um problema devido à ausência de um marco legal que puna crimes cometidos em razão da orientação sexual e da identidade de gênero. Diante disso, casos de discriminação raramente são punidos e episódios de violência são julgados como crimes comuns, o que não contribui para desestimular esse tipo de conduta perversa praticada contra a população LGBT.

Levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia identificou que a cada 27 horas uma pessoa foi assassinada em decorrência de sua identidade de gênero ou orientação sexual em 20152. De acordo com o monitoramento realizado pela Transgender Europe3, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo; nos últimos 7 anos, o país liderou o ranking com 689 casos — a título de comparação, o segundo colocado, México, com seus 122 milhões de habitantes, reportou 194 homicídios de travestis e transexuais no mesmo período; o terceiro colocado, Estado Unidos, com uma população de 316 milhões de habitantes, reportou 108.  É preciso considerar que diante da ausência de legislação específica para a criminalização desse tipo de violência, ambos os estudos foram baseados em notícias veiculadas pela mídia e entrevistas com familiares de vítimas e, portanto, é provável que o número de crimes cometidos contra homossexuais e transexuais seja ainda maior.

Além de homicídios, a discriminação também causa danos emocionais, econômicos e sociais. Vídeo divulgado pela ONU em dezembro de 2015 (https://www.youtube.com/watch?v=DvSxLHpyFOk) traz uma compilação de dados e estudos abordando o impacto da homotransfobia tanto nos indivíduos que a sofrem como na sociedade na qual estão inseridos. De acordo com os dados trazidos pela organização, abandono escolar, desemprego, pobreza e depressão são problemas comuns à população LGBT decorrentes da discriminação.

Estudo conduzido no Reino Unido em 2014, intitulado Youth Chances, concluiu que dos jovens LGBT entrevistados (i)42% utilizavam medicamentos para ansiedade ou depressão; (ii) 52% já se automutilaram; e (iii) 44% já consideraram suicídio – a título de comparação, entre a população geral esse percentual é de 21%4.

Pesquisa divulgada pela Human Rights Campaign demonstrou que 40% dos moradores de rua jovens dos EUA são LGBT e estão em situação de rua porque fugiram de casa ou foram expulsos pelas famílias, sendo que em ambos os casos o motivo foi discriminação relacionada à identidade de gênero ou opção sexual5.

Estudo conduzido pelo Williams Institute — UCLA com apoio da USAID envolvendo 39 países identificou que a população LGBT comumente (i) é alvo de prisões injustificadas e violência policial; (ii) é acometida por taxas desproporcionais de violência física, emocional e estrutural; (iii) sofre discriminação para encontrar trabalho, especialmente formal e/ou bem remunerado; (iv) encontra múltiplas barreiras para acesso à saúde física e mental; e (v) sofre discriminação nas escolas impetrada por professores e outros estudantes. Esses fatores afetam de forma significativa o potencial humano, social e econômico desses indivíduos6.

Conforme Charles Radcliffe, sênior human rights advisor para o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, a discriminação baseada na orientação sexual e identidade de gênero não fere apenas as pessoas que a sofrem, mas também o setor privado e a economia de um país7. De acordo com o vídeo da ONU acima mencionado, e com base nos estudos aqui citados, os efeitos da discriminação fazem com que as empresas percam talentos, criatividade e produtividade. Já o estado, além de ter que gastar mais com saúde e seguridade social para reparar os danos da discriminação, deixa de arrecadar receitas que poderiam ser investidas em outras áreas, tais como educação, infraestrutura e geração de emprego.

Corroborando esse entendimento, estudo realizado pelo Banco Mundial em 2014 foi capaz de relacionar os efeitos da discriminação contra a população LGBT e a exclusão desse grupo do mercado de trabalho com o desenvolvimento econômico, concluindo que a discriminação contra homossexuais, bissexuais, transexuais e travestis pode causar uma perda de até 32 bilhões de dólares na economia do país8.

O estudo realizado pelo Williams Institute acima mencionado identificou, por sua vez, clara correlação entre promoção e garantia de direitos à população LGBT e o aumento do IDH e do PIB per capita de um país. Segundo os pesquisadores, a simples adoção de leis antidiscriminatórias já são suficientes para contribuir com o aumento da renda e do bem-estar da população.

Diante do exposto, o impacto da homofobia e da transfobia na vida de um indivíduo e em toda uma sociedade produz graves consequências que não podem continuar sendo ignoradas. Políticas e programas precisam ser desenvolvidos para que haja o enfrentamento da discriminação e da violência contra a população LGBT e, consequentemente, a redução de seus efeitos negativos, tais como homicídios, suicídios, desemprego e pobreza.

No Brasil, apesar de os movimentos sociais já terem percebido a importância desse tipo de intervenção, ainda há muito a se avançar na promoção e garantia de direitos LGBT. Se por um lado tivemos avanços, como o casamento homoafetivo, por outro há retrocessos e resistências baseados numa visão mais tradicional da família e da sexualidade, tais como o a aprovação do PL nº 6.583/2013 — estatuto da família — na Comissão Especial da Câmara, a exclusão de referências sobre identidade de gênero, diversidade e orientação sexual nos planos estaduais de educação e, ainda, o novo arquivamento do PL nº 122/2006 que criminaliza a homofobia no Senado. O que tiramos disso é que enquanto os costumes tiverem peso maior que as evidências, a população LGBT e outros grupos minoritários continuarão a sofrer violência, discriminação e privações evitáveis.

Referências:

http://www.sdh.gov.br/noticias/2016/janeiro/ApresentaoDisque100.pdf
http://pt.calameo.com/read/0046502188e8a65b8c3e2
http://www.transrespect-transphobia.org/uploads/downloads/2015/TMM-IDAHOT2015/TMM-PR-IDAHOT2015-en.pdf
http://www.youthchances.org/wp-content/uploads/2014/01/YC_REPORT_FirstFindings_2014.pdf
http://www.hrc.org/resources/lgbt-youth-homelessness
http://williamsinstitute.law.ucla.edu/wp-content/uploads/lgbt-inclusion-and-development-november-2014.pdf
http://www.huffingtonpost.com/charles-radcliffe/wrecked-lives-corporate-l_b_8713036.html
8 http://goo.gl/ufKW0S

Questões Censitárias e o “Genocídio Estatístico”: o caso das populações indígenas no Chile

A maioria dos países adota há anos o censo demográfico como instrumento para conhecer as diferentes características de sua população, tais como distribuição de habitantes por gênero, cor e etnia.  Além de fornecer este retrato estatístico, a realização periódica do censo também permite monitorar a composição da população ao longo dos anos, facilitando a identificação de grandes mudanças demográficas, como ocorreu no Chile entre os anos de 1992 e 2002.

No censo realizado em 1992, 10,3% da população chilena se autodeclarou indígena. Entretanto, tal porcentagem foi amplamente questionada à época, na medida em que o questionário aplicado considerou apenas as três etnias oficialmente reconhecidas: Mapuche, Aymara e Rapa Nui. Diante disso, os povos cujas etnias não foram contempladas no censo não compuseram as estatísticas, distorcendo a real dimensão dos povos indígenas no país andino.

Em 1993, depois de sancionada a Ley Indígena, cinco novas etnias passaram a ser oficialmente reconhecidas. No entanto, ao invés de registrar o aumento esperado, o censo realizado em 2002 apresentou uma redução no número de pessoas que declararam pertencer a alguma das oito etnias; após 10 anos, o Chile viu seus povos indígenas cair a apenas 4,6% da população.

O fato curioso é que no período compreendido entre ambos os censos não foram reportados quaisquer casos de genocídios, epidemias, migrações em massa ou outro fator que pudesse justificar tamanha redução em um curto espaço de tempo. Tal episódio passou a ser então reconhecido como um genocídio meramente estatístico.

O que levou a essa drástica redução, afinal?

Ao investigar a raiz do problema, conclui-se que seu fato gerador estava no modo de perguntar, ou seja, na formulação da questão aplicada pelo censo. Enquanto em 1992 a pergunta utilizada foi “se você é chileno, considera-se pertencente a alguma das seguintes culturas?”, em 2002 a questão foi modificada para “você pertence a algum dos seguintes povos originários ou indígenas?”.

O problema da alteração encontra-se no fato de que muitos povos indígenas possuem suas próprias definições sobre pertencimento que muitas vezes diverge da percepção do indivíduo sobre sua etnia. Portanto, podem existir pessoas que possuem ascendência indígena, seguem culturas e tradições indígenas, se reconhecem como indígenas, vivem dentro ou ao redor de comunidades indígenas, possuem as mesmas necessidades da comunidade a qual sentem pertencer, mas não são reconhecidos pelo povo como parte dele.

Mas qual é o problema do “genocídio estatístico”?

A questão indígena na América Latina é tratada com uma atenção especial pelos governos nacionais e organismos internacionais. Em termos de políticas públicas e garantias de direitos fundamentais, o conceito de “indígena” está mais diretamente relacionado ao sentimento de pertencimento do indivíduo à cultura e à etnia do que às determinações e regras de comunidades específicas. Nesse sentido, ao considerar os resultados obtidos no censo realizado em 2002, uma parcela significativa da população pode ter tido seus direitos mitigados ou, ainda, ter sido excluída de planejamentos e implementações de políticas públicas voltadas exclusivamente aos povos indígenas.

Considerando as implicações que possivelmente decorreram do resultado do último censo, a questão foi devidamente alterada para o censo realizado em 2012, de forma a abranger todos aqueles que se consideravam indígenas. Diante da pergunta “você se considera pertencente a algum povo indígena?”, 11,1% da população chilena assim se declarou. Contudo, é preciso destacar que devido a problemas metodológicos – exclusão de 10% da população da aplicação dos questionários – os resultados desse novo censo foram cancelados em 2014, voltando a viger aquele realizado em 2002.

O que podemos aprender com esse caso?

O caso do Chile não é o único registrado nesse sentido, mas ilustra perfeitamente as consequências que uma pergunta mal planejada pode trazer a uma pesquisa, seja ela censitária ou não. Antes de elaborar um questionário, um pesquisador precisa se preocupar, sobretudo, em conhecer bem o objetivo da pesquisa, a região na qual ela será aplicada e as características de seus entrevistados, pois caso contrário, o resultado obtido pode distorcer a realidade e as consequências podem ser irreparáveis.

Fontes:

http://www.ine.cl/canales/chile_estadistico/estadisticas_sociales_culturales/ etnias/pdf/estadisticas_indigenas_2002_11_09_09.pdf

http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=39334376

http://www.mapunet.org/documentos/mapuches/Ref_met_cen_1992-2002.pdf

http://blogs.iadb.org/y-si-hablamos-de-igualdad/2015/03/19/como-prosa-y-politica-pueden-reducir-la-poblacion-indigena/

Qual é o Jogo?

Em homenagem a John Nash, falecido recentemente, falaremos um pouco hoje sobre esse gênio da matemática e como nos valemos do trabalho dele também aqui na Plan!

John Nash revolucionou as teorias que explicavam interações sociais através da matemática. Ele agregou muito a um campo de estudos chamado Teoria de Jogos, criado por John von Neumann. A Teoria dos Jogos é fascinante pois nos ajuda, por exemplo, a compreender comportamentos e tomadas de decisões de pessoas ou empresas.

Lembram-se no filme “Uma Mente Brilhante”, daquela cena do bar onde John Nash e seus colegas estão interessados em uma moça loira bonita, que está acompanhada de suas amigas morenas? Pois então, naquele momento, Nash e seus amigos são os jogadores e as ações (a) cortejar a loira ou (b) cortejar uma amiga morena, são as estratégias de cada jogador. Quais então são os possíveis resultados desta situação?

(1) se todos simultaneamente cortejarem a loira, ela irá rejeitar a todos. Se, depois disso, alguém cortejar uma morena, ela também vai ignorar a proposta pois ninguém gosta de ser segunda opção e no fim, ninguém se dá bem;

(2) se cada jogador corteja uma morena, ignorando a loira, todos se dão bem no final e;

(3) se cada jogador corteja uma morena e apenas um corteja a loira, todos se são bem, mas aquele que fica com a loira fica mais feliz do que os outros.

Até então, acreditava-se no que Adam Smith previa: “em uma competição, as ambições individuais servem o bem comum”. No entanto, John Nash provou que o resultado será aquele em que os jogadores fazem o que é melhor para si e também para o grupo.

Sua teoria prevê então que, no exemplo do bar, o resultado será o cenário número 3, ressaltando que nesse jogo é permitida a cooperação entre os jogadores. Isto é então o que se configura como um Equilíbrio de Nash, que é uma situação onde todos os jogadores não têm nenhum incentivo de desviar. Ou seja, aquele que ficar com a loira, já estará feliz e, portanto, não mudará de estratégia. E, aquele que ficar com uma morena também não mudará de estratégia, pois seria rejeitado pela loira e, ao mesmo tempo, perderia suas chances com a morena (melhor uma garota do que nenhuma, não é mesmo?)

Perceba que o equilíbrio do jogo do bar é diferente do equilíbrio do famoso jogo “O Dilema dos Prisioneiros”, onde os jogadores não podem cooperar. Portanto, a situação de equilíbrio depende das regras do jogo.

A Teoria dos Jogos já foi muito usada em estudos aplicados, inclusive por nós aqui na Plan! Num trabalho de campo realizado no Mato Grosso, onde o objetivo era entender melhor o comportamento dos agricultores e pecuaristas da região, usamos uma metodologia já usada por Cardenas e Carpenter (2013).

Vamos jogar então? Um dos jogos que aplicamos no campo foi o seguinte:

Imagine que cada círculo a cima é um saquinho com 10 fichas dentro. Cada saquinho tem 5 fichas com os valores indicados acima. O saquinho $25/$47, por exemplo, tem 5 fichas de $25 e 5 fichas de $47. Se você pudesse escolher um saquinho para depois sortear uma ficha sem olhar e o valor da ficha sorteada fosse o seu prêmio, qual saquinho você escolheria?

Resposta: O objetivo desse jogo não é achar um equilíbrio mas identificar padrões de comportamento. Veja que o valor médio que você pode ganhar aumenta no sentido horário. Se você escolheu o saquinho $18/$62, por exemplo, o seu rendimento médio é de $40, mas se você escolheu $4/$91, o seu rendimento médio é $47,50. Por outro lado, a variância entre as alternativas também aumenta no sentido horário, indicando maior risco. No saquinho 0$/$95 você pode ganhar bastante dinheiro, mas também pode não ganhar nada enquanto que no saquinho $33/$33 você ganha $33, com certeza. Note então que não há resposta certa nesse jogo! O objetivo é apenas avaliar como as pessoas se comportam diante de situações de risco. Uma pessoa que escolhe o saquinho $33/$33 é mais avessa ao risco do que aquele que escolhe 0$/$95.

No caso do Mato Grosso, isso ajudava a explicar porque algumas pessoas permaneciam na atividade pecuária, que no longo prazo tem um rendimento mais baixo do que na lavoura, mas por outro lado, é uma atividade menos suscetível às condições climáticas, por exemplo.

Durante essa pesquisa, aplicamos também outros jogos para identificar como as pessoas se comportam diante de incertezas ou se elas são avessas à perda.

Os resultados ainda não foram publicados, mas certamente ajudarão a explicar muito as atividades agropecuárias na região.

Fontes:

CARDENAS, Juan Camilo e CARPENTER, Jeffrey. Risk atitudes and economic well-being in Latin America. Journal of Development Economics 103 (2013) pg. 52-61.

https://plus.maths.org/content/if-we-all-go-blonde, acessado em 07/07/2015

hashtag somos todos classe média

Deixe-me adivinhar: você respondeu que pertence à classe média. Como é que adivinhei? Bem, as probabilidades estavam do meu lado, e em 3 das 5 alternativas é referido um sub-estrato médio; o fato de estar a ler este blogue também indicia que você tem um grau de instrução relativamente elevado – e vários estudos apontam que educação e renda estão correlacionados, etc.

Mas não, na verdade se acertei foi simplesmente porque a maior parte das pessoas acha que é de classe média. Isso deve-se a um viés inerente à autopercepção de classe que, como sucede por vezes com as percepções, nem sempre corresponde perfeitamente à realidade. No caso da percepção de classe, isto verifica-se no Brasil, na Argentina e até um pouco por todo o mundo.

Para ajudar a explicar este viés, podemos adaptar ligeiramente o conceito de Privação Relativa, que o sociólogo Robert K. Merton desenvolveu para explicar o desvio social. Neste sentido, a auto percepção de classe social depende sobretudo da posição social relativa às pessoas que cada um vê como mais próximos e tende a enviesar-se ainda mais por pensarmos popularmente a divisão de classes como pobres, classe média e ricos1. Por isso, é natural que alguém que esteja entre os 10% com mais rendimentos ache que não é realmente rico.

Até porque haverá sempre alguém que parece ter mais recursos que nós: “como é que eu posso ser considerado rico se eu nem tenho um helicóptero/não moro em uma cobertura/não troco de carro todos os anos/não moro em uma cobertura/não tenho um helicóptero/não tenho um jato privado/não tenho uma ilha/etc”. Da mesma forma, alguém que faça parte dos 10% mais pobres entre as pessoas que possuem rendimentos considerem que não são assim tão pobres porque “afinal sempre têm rendimento/ vão tendo comida na mesa/não moram na rua/etc”.

Entende-se, então, já agora, por que é que tanta gente se surpreendeu – e se indignou – quando a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) afirmou que, em 2012, do estrato médio (“classe média”) faziam parte as pessoas com renda per capita entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00 – talvez por isso, em 2014, a SAE passou a definir as classes a partir da renda domiciliar total.

Mas, apesar de pensar classes olhando apenas o rendimento é coisa de perturbar cientistas sociais por desconsiderar dimensões como status ocupacional, patrimônio e capitais social e cultural, por exemplo, a crescente difusão do termo Classe Média tem sido muito útil para o discurso político em todo o mundo: se toda a gente é classe média, dirigir a retórica seja para uma “classe média emergente” ou para uma “classe média que carrega o país nos ombros” tende a conquistar cada vez mais espaço aos temas clássicos como a educação, saúde e pobreza.

Como diria o britânico John Prescott: “agora somos todos classe média”.


1. Na verdade, são estratos, definidos por renda, e não classes, definidas por posição na estrutura social, mas vamos adotar a linguagem corrente para facilitar o entendimento.

A Prostituição, o Banco de Dados e as Variáveis “Invisíveis”

Fonte imagem: http://simplesmenteassimj.blogspot.com.br/2014/01/go-to-india.html

Neste post resolvi falar sobre um tema um pouco fora de contexto. Esse assunto, no entanto, me vem de vez em quando à cabeça desde que li algumas reportagens que falavam sobre o aumento do número de pessoas contaminadas pelo HIV no Brasil. Decidi, portanto, descrever hoje um dos estudos mais interessantes com que já me deparei: “Sex workers and the cost of safe sex”, realizado na Índia.

Um motivo que torna este estudo especial é o fato de o banco de dados ter evidenciado algumas questões que tiveram de ser contornadas. Mas antes de falar sobre isso, vamos entender um pouco melhor as circunstâncias do estudo.

Sonegachi é um dos bairros de prostituição mais antigos e “bem-estabelecidos” de Calcutá. Essa região, segundo os autores, tem uma demanda estável de clientes porque fica próxima à Universidade de Calcutá. As ruas são estreitas o bastante para não permitirem a circulação de carros e possuem uma densidade grande de prédios entre 2 e 3 andares. Cada um desses prédios contém prostíbulos que oferecem uma gama muito variada de serviços e infra-estrutura. As garotas de programa quase sempre trabalham sob o comando de cafetões ou cafetinas e geralmente precisam pagar 50% da renda em troca de proteção ou aluguel. A prostituição em Sonegachi é um mercado muito competitivo. Em 1997, 4.000 garotas de programa trabalhavam em 370 prostíbulos atendendo 20.000 clientes por dia.

Com relação ao tema HIV, uma das razões pelas quais a contaminação pelo vírus é alta na região era porque que os homens tinham forte resistência ao uso da camisinha. A teoria econômica indica que, além de ser uma função da oferta e da demanda, o preço dos programas é determinado pelos atributos de cada garota. Como os homens geralmente preferiam não usar preservativos, era de se esperar que exigir sexo seguro tinha um impacto negativo sobre o preço do programa.

Assim, os autores buscavam com este experimento estimar essa perda na renda. Do ponto de vista de políticas públicas, essa estimativa é muito interessante pois o governo poderia, por exemplo, incentivar o uso de preservativos compensando de alguma forma as profissionais pelo decréscimo de seus ganhos. Note que, a situação aqui discutida, claramente não permitia monitoramento pois as negociações aconteciam, muitas vezes, entre quatro paredes.

Chegamos, então, a uma dificuldade desse estudo. Ao analisar o banco de dados, notou-se que algumas garotas com renda mais alta declaravam também que sempre obrigavam seus clientes a usarem camisinha. Significava isso, então, que a exigência, na realidade, não afetava a renda? Ou significa que as entrevistadas estavam mentindo? Provavelmente nem um nem outro! A explicação está nas variáveis não-observáveis. A beleza, por exemplo, é certamente algo que tem impacto sobre o preço do programa e, ao mesmo tempo, é uma variável imensurável, correto? Sim! Ora, como medimos a beleza? Mais ou menos bonita? A critério de quem? Esses atributos “invisíveis”, portanto, tiveram de ser levados em consideração na análise de preço.

Mas para lidar com tais dificuldades, existe a econometria. Neste experimento, os autores utilizaram variáveis instrumentais[1]. A solução achada foi usar um programa implementado pelo sistema de saúde no qual 12 garotas de programa foram recrutadas para educar e distribuir panfletos com informações sobre o uso de preservativos e os riscos do HIV[2]. Essa estratégia atendeu bem às exigências metodológicas, mas, para se certificarem de que as estimativas estavam próximas à realidade, uma outra estratégia de “enumeração” de cada garota também foi utilizada.[3] Usar dados em painel seria outra solução muito boa mas não foi utilizada pois os autores não tinham acesso a este tipo de informação.[4]

Resultados: o uso da camisinha diminuía a renda entre 66% e 79%! Agora, sabendo o grande impacto que a camisinha possui no preço do programa, as profissionais poderiam, por exemplo, fazer esforços conjuntos em forma de sindicatos para promover ações contra o sexo desprotegido. Os autores também sugerem que ações como essa poderiam ao mesmo tempo partir do governo que, no entanto, precisaria antes legalizar a profissão. Essas sanções, portanto, serviriam para compensar o impacto negativo da camisinha e diminuir a oferta de programas sem proteção.

Bibliografia:

GUPTA, Indrani, et al. Sex Workers and the Cost of Safe Sex: the compensating differential for condom use among Calcutta prostitutes. Journal of Development Economics. Vol. 71, p. 585-603. 2003.


[1] Variáveis instrumentais têm de obedecer a três regras básicas: (1) devem ter correlação com a variável endógena do modelo (neste caso, a variável que indica se a garota exige o uso ou não camisinha); (2) devem afetar a variável dependente (neste caso, o preço do programa) somente “através” da variável endógena; (3) e não podem pertencer ao modelo a ser estimado.

[2] A VI, neste experimento, era então uma variável indicando se a garota de programa recebeu o panfleto distribuído pelas educadoras.

[3] Neste processo, os pesquisadores listaram os bordéis de Sonegachi. A partir disso, uma amostra aleatória de cada prostíbulo foi selecionada e, em seguida, uma amostra aleatória de garotas de programa foi selecionada também. Cada garota dessa amostra recebeu um número de identificação que indicava a sequência em que cada uma foi localizada na rota dos pesquisadores.

[4] Estudos em que cada indivíduo é observado ao longo do tempo. A análise desse tipo de dado permite o controle das variáveis não-observáveis como beleza, charme etc.

Reflexões a 25 mil pés de altitude

Em abril passado cedemos um de nossos avaliadores a uma fundação norte-americana. Recebemos ontem este bilhetinho enviado por ele numa garrafa que nos chegou boiando pelo Atlântico:

Voar sempre me faz refletir. Há algum tempo voava por majestosas nuvens de tempestade entre São Paulo e Boston, voltando para casa, ruminando sobre a empresa que acabava de deixar. Sem mergulhar nos detalhes dos meus pensamentos, tentei escavar as origens comuns das experiências que passei entre meus colegas da Plan.
You'll get there

A Plan parece ser uma entre um punhado de instituições brasileiras que exclusivamente se dedicam ao monitoramento e à avaliação. Além disso, a Plan avidamente solicita trabalho de uma diversidade de clientes. O perfil variado dos clientes requer mais do que uma estratégia inteligente: cria um ambiente de projetos forçosamente artesanais e personalizados.

O que me impressionou e ainda me impresiona sobre meus colegas foi que, em um ambiente avesso ao risco e à incerteza, não cederam ao reflexo comum de se simplificar e especializar. Enquanto estava lá, nem estreitaram seu campo de clientes, nem se restringiram a um conjunto definido de métodos independentes da natureza do projeto.
Com um esforço incansável, evitavam se considerar especialistas oniscientes que chegam para resolver definitivamente os problemas dos outros. Ao contrário, se desafiaram a aprender, a considerar profundamente cada situação e evoluir ao lado de cada projeto. Enquanto projetavam uma imagem de solidez profissional, internamente conservaram um ambiente honesto, aberto e flexível que encorajava a experimentação e aceitava os riscos inerentes a isso, assim protegendo a chama delicada da inovação e da criatividade.

O que a Plan faz não se traduz fluidamente para um folder promocional ou para um desses sites desses de consultoria cheio de palavras-chave (“synergistic innovation in evaluative practice for a complex global community”…blá,blá,blá). Mas é essa a recusa do caminho fácil, a dedicação invisível desta empresa (além das capacidades incríveis dos indivíduos), que faz da Plan uma equipe formidável.

Não posso imaginar um grupo com o qual me orgulharia mais de ter trabalhado.

Sinceramente,
Will

Onde estão os avaliadores brasileiros?

Não há avaliadores no Brasil.

Foi a conclusão que levei do último congresso da Rede Brasileira de Monitoramento e Avaliação, ocorrido na Unicamp, em Campinas-SP, de 25 a 27 de setembro. Não é dizer que não haja pessoas que desempenham projetos de avaliação em suas diversas manifestações. Também não quer dizer que não existam funcionários públicos, diretores de responsabilidade social empresarial, e ongueiros comissionando trabalhos que engajam os anéis reflexivos dentro das organizações, apoiados pelas metodologias das ciências sociais. Mas a identidade do campo, da prática e dos profissionais é atomizada, dispersa entre inúmeros outros nomes.

Uma rosa por outro nome…?

Bem, acredito que a avaliação, como conceito, é tão natural quanto necessária. Parafraseando Mark, Greene, e Shaw, “talvez julgar coisas de forma avaliativa é ainda mais básico [na psicologia humana] que dar sentido ao mundo descritivamente.” Após algumas páginas afirmam: “se você pedir a 10 avaliadores que definam a avaliação, vai ouvir 23 definições diferentes”. (SAGE Handbook of Evaluation, 2006) O fato de a atividade da avaliação ser intrinsecamente enraizada na prática a meu ver exige criatividade e flexibilidade saudáveis do profissional. Quanto mais vinculado com a realidade quotidiana dos projetos sociais, menos risco de se tornar uma coisa rígida e monoteórica. Kuhn se referia aos campos das “ciências maduras”, mas serve como uma ótima prefiguração do que pode acontecer se fosse arrancado desses ambientes:

“vamos finalmente descrever a pesquisa como uma tentativa vigorosa e dedicada de forçar [a coisa pesquisada] nas caixas conceituais fornecidas pela educação profissional.” (tradução minha)

Quer dizer que a atividade de avaliar vai ocorrer de uma forma ou de outra, mas reunir um núcleo de pessoas que se identificam como avaliadores profissionais é uma tarefa difícil.

A tarefa da RBMA é então ultra delicada: construir uma nova comunidade, o esqueleto de uma nova disciplina no país, unida, mas não tão unida. Este desafio vem com enormes responsabilidades, principalmente a articulação da identidade profissional do avaliador.

A profissão do avaliador

O caminho que leva a uma comunidade avaliativa brasileira robusta e vivaz será calçado com passos concretos. Acho que foi isso que respaldava a pergunta de Martha McGuire durante o evento:

—O site da RBMA tem uma listagem de avaliadores?

Não tem.

Outro desalinhamento sutil de destaque: quantos participantes do seminário foram convidados para um outro congresso internacional especificamente sobre a criação de comunidades nacionais de avaliação…EM SÂO PAULO…TRÊS DIAS APÓS O EVENTO DA RBMA? Quantos ao menos estavam cientes que ocorreria? Por que separar os dois eventos para começar, se os interesses dos envolvidos são tão otimamente alinhados? Ok, havia discussões online prévias à conferência, e talvez foi por questões logísticas que tiveram de ser separados. Mas é um precedente desvantajoso para quem está procurando fortalecer e unificar. A American Evaluation Association já conta com mais de 4.000 membros, e os representantes da Fundação Ford, da USAID, e da Western Michigan University (único doutorado de avaliação oferecido nos E.U.A.) participam no mesmo nível e respondem aos mesmos processos seletivos que o resto dos membros. Visto a identidade já fraca e dispersa do avaliador brasileiro, não é o momento de enviar mensagens de exclusividade.

Olhando para frente, estou otimista. A RBMA está fazendo um trabalho difícil, nobre, e de altíssimo valor. Mas para que a avaliação como entidade orgulhosa e independente floresça, objetivo com que acho que todos as participantes na rede estão de acordo, o diabo está nos detalhes.