Em 2013, nossa colega de trabalho Camila Cirillo fez um relato sobre a vivência de um dia de campo em assentamentos precários no Espírito Santo. Aquela foi também a minha primeira experiência como pesquisadora e foi também meu primeiro contato com outra realidade social que não a minha, na época, ainda como estagiária na Plan.
Quatro anos depois, tive a oportunidade de coordenar a pesquisa do Estudo de Linha de Base do Projeto Pró-Semiárido, projeto assinado em parceria entre o Governo da Bahia e o FIDA – Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, por intermédio da Secretaria de Desenvolvimento Rural do Estado da Bahia – SDR, tendo a CAR – Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional como executora. O objetivo do Pró-Semiárido é reduzir a pobreza rural por meio da geração de renda, aumentar a produção, as oportunidades de trabalho agrícola e não-agrícola e desenvolver o capital humano e social, dando especial atenção a mulheres e jovens.
O projeto iniciou suas atividades em 2015, com foco em comunidades rurais, quilombolas, fundo de pasto e indígenas de 32 municípios do Estado da Bahia. A Plan foi contratada para realizar o Estudo da Linha de Base, por isso visitou 388 comunidades (beneficiárias e não beneficiárias) e aplicou mais de 2.500 questionários com as famílias residentes das comunidades espalhadas por 32 municípios baianos.
O desafio foi grande, mas trouxe um aprendizado ainda maior: com uma equipe de 16 pesquisadores, no dia 5 de outubro saímos de Petrolina rumo a Juazeiro para dar início à aplicação dos questionários. O primeiro obstáculo foi a logística, pois todas as comunidades ficam muito distantes do centro de suas cidades, por caminhos às vezes sem infraestrutura nenhuma e não mapeados na internet. Em algumas localidades, o carro não conseguia chegar em seu destino pois a região dominada pelos areais fazia com que o motor perdesse força. Em muitas ocasiões, o jeito era deixar os carros e seguir a pé.
Uma vez na comunidade, para obtermos uma amostra aleatória, fazíamos a contagem de todas as casas do local para podermos estimar o salto entre as residências. Por exemplo, se tivéssemos de cumprir um total de 7 questionários na comunidade e esta apresentasse 30 casas, nosso salto seria de 4 casas. Assim, escolhíamos aleatoriamente uma casa para começar a pesquisa, pulávamos as 4 próximas casas da sequência e aplicávamos a pesquisa novamente na casa de número “5”.
Mas não foi possível seguir essa metodologia em todas as comunidades, uma vez que algumas possuíam casas muito afastadas umas das outras, o que impossibilitava a contagem manual. Nesses casos, procurávamos o líder comunitário ou o agente de saúde para obter o número de domicílios da região. E aí, para a aplicação dos questionários, cada pesquisador se virava como dava. Pegava carona de moto, de jegue…
Apesar das dificuldades de uma pesquisa de campo desse tamanho, poder conhecer a região semiárida da Bahia e seus moradores foi maravilhoso. A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi “se é tão difícil assim pra gente chegar, imagina o poder público… essas pessoas devem estar esquecidas…” e infelizmente eu não estava tão errada assim. Além das condições climáticas que afetam a população dessa região, faltam serviços básicos como saúde, transporte e segurança pública.
“Aqui a gente não acredita em político, aqui a gente conta com a fé. Porque só Deus olha por nós…”
Morando na capital do Estado de São Paulo, é bem difícil me imaginar dividindo espaço com cabras, bodes, galinhas e porcos. No campo, a impressão que tive foi de harmonia. Além da paisagem característica do semiárido, ficou em minha memória também o seu som: o sino da cabra que orientava seu rebanho.
No questionário aplicado, perguntamos sobre as condições socioeconômicas das famílias, o tamanho de seu rebanho, produção e venda agropecuária, sua renda anual e estratégias de enfrentamento da seca. As respostas, mesmo quando amargas, não eram em tom de lamento e sim de resignação, o que, confesso, me deixava triste.
“Ano passado eu perdi tudinho, a seca me levou tudo, não vingou nenhuma plantação.”
“A seca castiga, moça, mas fome nós não passa não… Aqui todo mundo se ajuda, a gente troca entre nós, compra quando dá… Não é sempre que tem de tudo no prato, mas pelo menos um ovo frito no almoço nós tem.”
“Eu tenho aqui meus cabritos mas eu não gosto de matar os bichinhos não, eu só faço isso quando não tem outro jeito mesmo”.
“Graças a Deus, sede a gente não passa mais. Tem época que os bichos sofrem, mas aqui em casa não falta um copinho de água. Mas tem que economizar…”.
O que mais me chamou a atenção foi a hospitalidade de todos. Mesmo na presença de desconhecidos, as famílias eram sempre muito atenciosas. Tinham ânsia por serem ouvidas e não tiravam o sorriso do rosto. Mulheres e homens marcados pelo sol que enganava suas idades abriam as portas de suas casas e nos ofereciam tudo o que estava aos seus alcances: água, café, almoço, estadia.
“Aqui a gente tem pouco, mas o pouco que tem dá pra dividir. Não me faça essa desfeita, moça!”. E foi assim que eu saí com uma melancia nos braços.
Conhecer essas pessoas e suas realidades foi uma experiência revigorante, dessas que nos dão a sensação de que, de fato, fazemos parte do mundo. Como pesquisadora, fico grata por ter tido a oportunidade de vivenciar a prática do campo.
Para finalizar, gostaria de deixar registrado também que além de toda bagagem que adquiri nesse campo, também assisti um pôr do sol incrível, além de constatar que Luiz Gonzaga tinha razão: não há, ó gente, ó não, luar como esse do Sertão….