Incorporando a perspectiva de gênero em avaliações de políticas públicas e programas sociais e humanitários

Ao longo dos últimos três anos, atuando como especialista de estudos de gênero, eu fui convidada pela Plan Eval para participar de algumas pesquisas e avaliações que consideravam a perspectiva de gênero na análise e avaliação de intervenções sociais e humanitárias. Não obstante, participei de outras tantas avaliações que não faziam a incorporação desta perspectiva, mas que ao longo das análises ficava evidente que ao menos parcialmente esta incorporação poderia ser feita. O fato é que muitas das intervenções sociais e/ou humanitárias podem não fazer referência explícita, mas isso não significa que não tenham um impacto diferenciado por gênero em determinados grupos ou localidades, principalmente devido à desigualdade estrutural entre homens e mulheres ainda persistente na maioria das sociedades – dada as devidas especificidades regionais e/ou culturais, são as mulheres e meninas que continuam a sofrer os maiores impactos em situações de vulnerabilidade, como de grave crise econômica, violência e/ou conflitos armados, por exemplo. Dessa forma, segundo Medina (2021):

“incorporar a perspectiva de gênero implica considerar sistematicamente as diferenças entre mulheres e homens nas diversas esferas de políticas ou programas, com a vontade de identificar essas desigualdades e os fatores que as geram, torná-las visíveis, projetar e aplicar estratégias para reduzi-las e, assim, avançar para sua erradicação. Da mesma forma, significa abordar o estudo dos fenômenos sociais sem assumir a universalidade das experiências masculinas e também questionar o sistema sexo-gênero e suas implicações”.[1]

© UNHCR/Patrick Brown

Para a reflexão que proponho sobre este tema, compartilho algumas das avaliações que realizei no último ano, em 2022, que poderiam ter dado ênfase à questão de gênero desde a sua concepção, mas que não o fizeram explicitamente. Os dois projetos de avaliação que destaco foram solicitados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Brasil.

O primeiro, conduzido por uma equipe formada pela Plan Eval, tratou-se de uma avaliação de resultados sobre o Programa Acesso Mais Seguro (AMS), que visa reduzir e mitigar as conseqüências da violência armada sobre os serviços públicos essenciais, como educação, saúde e assistência social. O segundo, realizado de forma independente, fazia referência ao mapeamento das necessidades de comunicação das pessoas migrantes e refugiadas, especialmente da população venezuelana, atendida no âmbito da Operação Acolhida do governo federal, no estado de Roraima. Eram avaliações completamente diferentes entre si, tanto de escopo e estrutura, como de públicos alvos. Contudo, em cada uma havia evidências de que estas intervenções poderiam ter assumido a perspectiva de gênero, uma vez que eram as mulheres que estavam sendo impactadas de forma mais negativa e desigual pelos problemas que a organização procurava mitigar.

© Foto: UNFPA Brasil/Pedro Sibahi

O Programa AMS trabalhava em parceira, no momento da avaliação, diretamente com as secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social[2] de quatro municípios: Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Fortaleza e Porto Alegre. Por sua vez, o Programa era executado por profissionais que estavam na ponta dos três serviços referidos, como: diretores(as) de escolas, professores(as), médicos(as), dentistas, enfermeiros(as), agentes comunitários e assistentes sociais. Há pesquisas que mostram que as mulheres ocupam em maior número os serviços públicos de forma geral, atuando especialmente no atendimento direto aos usuários dos serviços, porém são minoria nos cargos de maior liderança e tomada de decisão[3]. Além desta desigualdade de gênero “vertical”, há também a desigualdade “horizontal”, quando há a diferença na distribuição de gênero em algumas carreiras específicas. São as consideradas “posições de cuidado”, como as das áreas de assistência social, educação e saúde, que são, historicamente, pior remuneradas, representando um abismo salarial entre os gêneros[4].

Esta intervenção que visa, entre outros objetivos, manter funcionando com segurança os serviços essenciais públicos em áreas de grande vulnerabilidade, passou a impactar a rotina de centenas de profissionais, especialmente que se identificam como mulheres, assim como tem potencial de impactar a vida de muitas beneficiárias/usuárias mulheres que dependem, por exemplo, quase que exclusivamente das escolas abertas para poder trabalhar. Esta afirmação baseia-se nos relatos dados por mães, e demais pessoas cuidadoras, durante os grupos focais realizados com as comunidades, nos quais 90% das pessoas participantes eram mulheres e se apresentavam como chefes de família ou como principais responsáveis pelas suas crianças[5].

Já no caso da avaliação das necessidades de comunicação da população migrante e refugiada em Roraima, havia desde o princípio a preocupação de se mapear as necessidades de subgrupos específicos como: pessoas indígenas; pessoas com deficiência; pessoas LGBTQIAP+; pessoas idosas; mulheres jovens e/ou mães solteiras. Mesmo sendo reconhecido pelas organizações humanitárias que atuam em parceria com o governo federal na Operação Acolhida de que a maioria das pessoas migrantes e refugiadas que entram por esta fronteira são homens, ao longo da avaliação ficou evidente que eram as mulheres – pertencentes a cada grupo específico citado – que tinham maiores dificuldades para se comunicar e conseguir informações sobre as ajudas humanitárias e sociais no país, ficando dependentes de companheiros, demais familiares, ou ainda, exclusivamente, de agentes externos (como no caso das mulheres solteiras com crianças pequenas).

Em ambas as avaliações, o que foi possível de se apresentar como resultado foi uma contextualização das desigualdades de gênero em cada cenário como parte do diagnóstico realizado, sendo ainda elaboradas algumas recomendações e sugestões específicas para que a perspectiva de gênero se fizesse mais presente e explícita nas intervenções propostas pela organização. Não obstante, havia outros passos que poderiam ter sido dados antecipadamente, os quais eu sugiro fortemente aos avaliadores e avaliadoras que me lêem ao se depararem com casos de avaliações que apresentem evidências irrefutáveis de desigualdade de gênero no contexto da intervenção em questão.

Guias práticos sobre avaliação com a incorporação da perspectiva de gênero, como o lançado pelo Instituto Catalão de Avaliação de Políticas Públicas[6], ou como os que foram elaborados pela ONU Mulheres[7], podem ser de grande valia para apoiar nesta tarefa. A seguir, aponto brevemente algumas das orientações destes guias para destacar o que pode ser seguido para que uma avaliação considere minimamente a perspectiva de gênero.

Perguntas iniciais

É conveniente levantar algumas perguntas iniciais, seja para realizar a avaliabilidade da avaliação de um programa ou política, seja para a análise prévia que se desenvolve na primeira parte de uma avaliação em qualquer âmbito de estudo. Tais perguntas podem ajudar a entender e classificar o enfoque de gênero de uma intervenção a partir das informações disponíveis. Elas podem ser como estas:

  • O programa coleta dados da situação inicial para os valores serem analisados? Estes dados são segregados por sexo?
  • Eles incluem informações sobre outros marcadores sociais, como etnia/raça, recursos econômicos, idade, escolaridade?
  • Há informações disponíveis sobre como mulheres e homens respondem e valorizam a intervenção?
  • O programa possui indicadores específicos de desigualdade de gênero e tem acompanhamento?
  • Durante a implementação da intervenção, houve um acompanhamento dos perfis das pessoas beneficiárias do programa?

Perguntas de avaliação

Perguntas de avaliação com foco em gênero são igualmente importantes e devem fazer parte da fase de planejamento metodológico da avaliação. Medina (2021) considera útil selecionar questões de avaliação concretas e projetadas para entender as diferenças de gênero e que vão além de considerar as diferenças entre mulheres e homens, como exemplo:

• Existem normas, práticas ou estereótipos de gênero relacionados aos fatores que a intervenção está tentando mudar? Quais seriam? Como eles afetam mulheres e homens?

• A intervenção visa ou consegue mudar essas normas, práticas ou estereótipos? De que modo?

• Existem perfis diferentes de mulheres e homens entre os usuários do programa? O efeito da intervenção difere entre esses perfis?

• Existe algum perfil de participante (especialmente mulheres e pessoas LGTBQIAP+) sub-representado entre a população beneficiária? Qual seria? Por quê?

• Existe algum perfil de participante (especialmente mulheres e pessoas LGTBQIAP+) sub-representado em algumas das atividades da política ou programa? Qual seria? Por quê?

• Em função do seu gênero, os(as) beneficiários(as) da política vivenciam de forma diferente sua participação no programa? Por quê?

Execução e análise

Ao longo do processo de avaliação, o que inclui a coleta de dados e a análise, a perspectiva de gênero pode se incorporada de forma bastante prática, a partir de ações como:

• Procurar levantar amostras representativas entre os gêneros masculino e feminino;

• Incorporar a voz de mulheres e de organizações feministas ou de afirmação identitária sempre que possível;

• Desagregar dados e fazer análises diferenciais, incluindo outros marcadores sociais sempre que possível;

• Analisar as implicações da política ou do programa em termos de gênero, levando em consideração a interseccionalidade com outros marcadores sempre que possível;

• Definir recomendações específicas sobre gênero para a intervenção;

• Garantir uma linguagem inclusiva e neutra na redação dos relatórios.

Por fim, a avaliação de políticas e programas sociais e humanitários, enquanto um exercício científico de levantamento de evidências, agrega em si um grande componente de aprendizagem que pode (e deve!) gerar novos conhecimentos e práticas, sendo assim visto igualmente como um importante apoio na promoção de mudanças mais amplas e profundas nas organizações e instituições, como na sociedade em geral. Incorporar a perspectiva de gênero nas avaliações, assim como de outros marcadores sociais, faz parte deste processo de aprendizagem para todos os envolvidos, o que requer paciência, é verdade, mas que não suporta mais postergação.


[1] MEDINA, Júlia de Quintana. Guía práctica 18: La perspectiva de género en la evaluación de políticas públicas. Instituto Catalán de Evaluación de Políticas Públicas (Ivàlua), 2021, p.21 (tradução livre).

[2] Apenas em Fortaleza o CICV apresentava parceria com as três secretarias no momento da avaliação. Em Porto Alegre e Duque de Caxias as parcerias eram com as secretarias de Educação e Saúde. E no Rio de Janeiro apenas com a Educação.

[3] De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 2022, as mulheres representam 57% dos profissionais no setor público, enquanto os homens são 43%. Contudo, os diretores e gerentes estão representados por 39% de mulheres e 61% de homens.

[4] HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa37, 595-609. 2007.

[5] De acordo com dados do Dieese de 2022, no Brasil, de 12,7 milhões de famílias monoparentais com filhos, 87% são chefiadas por mulheres e 13% por homens. Nos demais núcleos familiares, a diferença não é tão grande: 51% das famílias são chefiadas por mulheres. Das 11 milhões de mães solteiras e chefes de família, 62% são negras. Dentro desse subgrupo, 25% prestam serviços domésticos; 17% trabalham nos setores de educação, saúde humana e serviços sociais; e 15% no comércio. Entre as mulheres não negras, a proporção é praticamente inversa: 22% trabalham com educação, saúde humana e serviços sociais, 17%, no comércio e 16% com serviços domésticos (Boletim Especial de 8 de março – Dieese com dados do IBGE – PnadC, 2022)

[6] MEDINA (2021).

[7] Os guias da ONU Mulheres podem ser encontrados no site oficial desta agência: Guía de evaluación de programas y proyectos con perspectiva de género, derechos humanos e interculturalidad (2014); Manual de evaluación de ONU Mujeres: Cómo gestionar evaluaciones con enfoque de género (2015).

Avaliação de impacto: condições e desafios em tempo de pandemia

Certa vez, li em um post de uma especialista em avaliação no Linkedin, de que a medição de impacto teria virado um verdadeiro “fetiche” entre financiadores e/ou gestores de programas sociais e políticas públicas. Ao mesmo tempo em que concordava inteiramente com os argumentos apresentados, dada a minha própria experiência profissional como avaliadora, procurava entender a fonte dessa obsessão por este tipo de avaliação. Posso até entender que haja uma certa ansiedade por parte dos financiadores para justificar os investimentos, assim como também entendo a aflição por parte dos gestores para apresentar os resultados alcançados; porém, enquanto avaliadora, o que percebo é escassez de conhecimento sobre esse tipo de avaliação; afinal, nem todos os programas ou políticas justificam uma estimação de impacto. E nesse ponto, cabe, a nós avaliadores, compartilhar, sempre que possível, as condições que permitem a condução bem-sucedida de uma avaliação de impacto. Escrever este texto foi a forma que encontrei para contribuir nessa tarefa, trazendo ainda, de forma bastante sucinta, algumas reflexões da minha experiência nos dois últimos anos.

De maneira geral, as avaliações de impacto, ao oferecer evidências críveis quanto ao desempenho e ao alcance dos resultados desejados, são centrais à construção do conhecimento sobre a efetividade de programas sociais e de desenvolvimento, esclarecendo o que funciona e o que não funciona na promoção do bem-estar de uma população ou comunidade. Em resumo:

“Uma avaliação de impacto avalia as mudanças no bem-estar dos indivíduos que podem ser atribuídas a um projeto, programa ou política em particular. Este enfoque na atribuição do resultado é o selo distintivo das avaliações de impacto. Igualmente, o desafio central da execução de avaliações de impacto é identificar a relação causal entre o projeto, programa ou política e os resultados de interesse”[1].

A característica distintiva da medição de impacto é justamente o enfoque na causalidade e atribuição de resultados; neste sentido, a principal pergunta a ser formulada em uma avaliação de impacto é: “qual é o impacto (ou efeito causal) de um programa sobre um resultado de interesse?” Isto é, uma avaliação de impacto tem como interesse o efeito que o programa gera exclusivamente em virtude de sua existência.

Apresentação no VII Encontro da Rede do Acesso Mais Seguro 2022, em Brasília (DF).

Para poder estimar o efeito causal ou impacto de um programa sobre os resultados, qualquer método escolhido deve estimar o chamado contrafactual, isto é, qual teria sido o resultado para os participantes do programa se eles não tivessem participado do programa. Na prática, a medição de impacto exige que o avaliador compare um grupo de tratamento que recebeu o programa e um grupo que não o recebeu, a fim de estimar a efetividade do programa. Para tanto, o melhor é que estes dois grupos sejam identificados ainda na etapa de planejamento do programa ou política; o que não significa que não possam ser identificados em uma etapa posterior, contudo, neste caso, é maior a probabilidade de se produzir estimativas menos confiáveis.

Espera-se que na etapa de planejamento de um programa ou política sejam produzidos: i) dados de linha de base para estabelecer as medidas pré-programa de resultados de interesse; e o ii) desenho de uma teoria de mudança bem clara sobre os resultados pretendidos. Isso permite que se obtenha uma estimativa válida do cenário contrafactual e, assim, tende-se a produzir medições confiáveis. Ademais, evita-se que os resultados da medição sejam dependentes de contextos e/ou fatores externos que possam afetar programas ao longo de sua implementação.

Nos últimos dois anos, muitos programas sociais e de desenvolvimento tiveram que enfrentar as consequências da pandemia de COVID-19, o que, de certo modo, afetou os resultados pretendidos inicialmente. Não se tratando de afetações triviais, a pandemia, alinhada a outros problemas já conhecidos por gestores, como falta de recursos, pessoal e informação, gerou verdadeiras barreiras para uma avaliação de impacto, ao menos para programas de desenvolvimento que não criaram as condições necessárias para tal durante o processo de seu planejamento. Programas atravessados pelo período pandêmico tiveram, inclusive, seus processos de implementação seriamente afetados e/ou interrompidos. Isso foi possível de ser observado em alguns projetos de avaliação executados pela Plan Eval em 2021 e 2022.

Apresentação no VII Encontro da Rede do Acesso Mais Seguro 2022, em Brasília (DF).

Em um desses projetos, ficou evidente para a equipe de avaliadores que ao invés de uma avaliação de impacto seria mais pertinente que se realizasse uma avaliação do que estava sendo executado até aquele momento e descrevesse os processos, condições, relações organizacionais e pontos de vista das partes interessadas, como forma de situar em que estágio de desenvolvimento encontrava-se o programa para gestores e parceiros envolvidos.

Alternativamente, trabalhou-se também com análise de contribuição. Diferentemente da medição de impacto, que se ocupa da atribuição, na análise de contribuição a causalidade é estabelecida pela composição de um argumento lógico em que se leva em conta como diferentes partes envolvidas deram o seu quinhão para que o resultado observado acontecesse. Nessa abordagem, são descartadas explicações alternativas que, ainda que plausíveis, não são embasadas pelas evidências. Essas evidências, por sua vez, têm origem na documentação da memória do programa, nos dados de sistemas de monitoramento, em depoimentos, entrevistas e grupos de discussão, que são comparados para gerar a hipótese de contribuição mais plausível.

Além disso, a escuta de partes interessadas nas condições impostas pela pandemia serviu também como processo de reflexão não apenas sobre a situação dos programas mas também teve caráter muitas vezes terapêutico. Isso chama muito a atenção quando se considera as novas realidades impostas pela pandemia na saúde mental da população como um todo, tema incontornável naquele contexto de isolamento social e luto coletivo. Esses processos tanto influenciavam os resultados esperados como passaram a ser objeto dos programas no sentido de se incorporar medidas mitigatórias para aliviar as dificuldades psicossociais enfrentadas.

Apresentação no VII Encontro da Rede do Acesso Mais Seguro 2022, em Brasília (DF).

É compreensível que entre gestores as evidências quantitativas de impacto sejam fáceis de comunicar pelo poder sintético de um número que captura toda a diferença atribuída ao programa. Contudo, muitos se esquecem de que uma avaliação de impacto também se baseia em evidências qualitativas e de que estas podem explicar melhor como se deu o impacto de um programa na vida das pessoas.

Assim, na impossibilidade de se fazer a medição de impacto como esperado por algumas organizações, os últimos anos mostraram-se bastante frutíferos para se comprovar a relevância de estratégias alternativas de avaliação, o que já se nota no aumento da demanda por abordagens qualitativas no âmbito da cooperação para o desenvolvimento após um período de ascendência da abordagem experimental.


[1] Gertler, Paul J.; Martinez, Sebastian; Premand, Patrick; Rawlings, Laura B.; Vermeersch, Christel M. J. Avaliação de Impacto na Prática. Banco Mundial, Washington, D.C. 2015.

Ensinamentos da COVID-19 para a pesquisa qualitativa em Angola

É incontestável o impacto da pandemia da COVID-19 em diversos setores da economia e da sociedade neste ano de 2020. E com o setor de avaliação e monitoramento de projetos sociais não seria diferente. Todo o setor teve que repensar a forma de executar suas atividades, a maior parte delas passou a ser executada remotamente via plataformas de comunicação virtual. Reuniões com clientes, entrevistas com informantes chave, realização de grupos focais, apresentação de resultados, tudo isso foi readaptado para o mundo virtual para que os projetos de pesquisa e avaliação não parassem. É certo que algumas atividades já vinham sendo realizadas de forma remota há algum tempo, uma vez que avaliadores nem sempre vivem nas localidades onde os projetos sociais são conduzidos. Contudo, definitivamente, em alguns projetos essa readaptação se transformou em um grande desafio e gerou muitos ensinamentos para todos os envolvidos.

Como exemplo de um projeto desafiador que a Plan teve esse ano, cito o estudo qualitativo sobre o conhecimento, as atitudes, as práticas e as normas sociais e de gênero relacionados à interação entre cuidadores e crianças de 0-59 meses em três províncias de Angola (Bié, Huíla e Luanda). Este estudo foi encomendado pelo UNICEF Angola e contava com a visita de pesquisadores às três províncias para entrevistar informantes chave, como especialistas e profissionais, assim como gestores públicos das áreas da saúde e educação, ou ainda de áreas afins. Além, dos próprios cuidadores, especialmente pais e mães, que eram o público-alvo do estudo. A principal questão que se impôs para os pesquisadores da equipe foi: como realizar uma pesquisa qualitativa como essa que exigiria muito da observação participante do modo como pais e mães cuidam de suas crianças pequenas, sem estar presente?

A principal solução encontrada foi selecionar e treinar pesquisadores locais que pudessem ir até as famílias, visitá-las em suas residências e entrevistá-las. Entretanto, em Angola, algumas províncias instituíram barreiras em suas fronteiras para que as pessoas não circulassem livremente pelo país, como foi o caso de Luanda. E o próprio UNICEF não permitiu que houvesse o contato mais próximo entre pesquisadores e entrevistados com receio do contágio. Os pesquisadores locais deveriam então fazer as entrevistas por telefone. Duas dificuldades foram impostas nessa decisão: a seleção dos pesquisadores e o precário sistema de comunicação no país.

Xavier Donat - Creative Commons
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Ao longo da primeira fase da pesquisa, entrevistas virtuais com agentes comunitários e uma professora universitária acenderam a ideia na equipe de que jovens estudantes da área das ciências sociais e ativistas sociais, homens e mulheres, seriam ideais para conduzir as entrevistas com os cuidadores. Feita a seleção e o treinamento dos entrevistadores, faltava a seleção dos cuidadores. Estes, por sua vez, deveriam ter acesso pelo menos a um telefone celular, o que de certo diminuiu a chance de detectar famílias mais vulneráveis e mais distantes das áreas urbanas. E, uma vez selecionados, os entrevistadores encararam o desafio de ter algumas ligações de qualidade bastante precária ou de ter constantes interrupções na transmissão das chamadas.

Mesmo diante de todas as dificuldades, 106 pessoas ao todo foram entrevistadas para este estudo, sendo 34 informantes chave e 72 cuidadores (39 homens e 32 mulheres). As entrevistas qualitativas por telefone, ao mesmo tempo em que apontavam as perdas, também nos falavam de ganhos. Refiro-me às perdas quando, nas gravações feitas pelos pesquisadores, ouvíamos uma criança a chorar ou a pedir pelo pai e não ficávamos sabendo como os cuidadores reagiram no momento, não vimos sua expressão facial ou sequer o gesto que fizeram para conter o choro ou a súplica, ou seja, não vimos como os entrevistados se comportam com as crianças pequenas, assim como não vimos os lugares onde vivem, não sentimos o cheiro da comida que dão as crianças ou não sabemos como são as roupas que vestem seus filhos.

E quanto aos ganhos, refiro-me ao fato de os pesquisadores locais saberem como tratar e falar com os cuidadores, qual tratamento usar para cada pessoa, e a intimidade que criaram, sendo eles nativos do país, fez a diferença para que os dados coletados pudessem, mesmo com todos empecilhos possíveis, gerar um quadro o mais próximo da realidade diária do público-alvo. Um outro ponto forte dessa pesquisa foi poder contar com uma consultora italiana que morou por aproximadamente 10 anos em Angola e que acabou se casando com um angolano. Em muitos momentos, essa consultora pode traduzir para a equipe vocabulários, gírias, e explicar as disposições geográficas e culturais das três províncias em questão, ajudando assim a preencher alguns pontos que as entrevistas deixaram vagos.

A falta de experiência de alguns dos pesquisadores locais não se sobrepôs ao cuidado que tiveram para se aproximar remotamente de pessoas que estavam às vezes do outro lado do país. Chamou especial atenção a entrevista em que ao final a mãe chorou e agradeceu a paciência e o cuidado que a pesquisadora teve ao ouvi-la por tanto tempo. Como a pesquisa era sensível à questão de gênero, os pesquisadores locais foram divididos de forma que mulheres entrevistariam cuidadoras mulheres e homens entrevistariam cuidadores homens.

Dentre os muitos achados da pesquisa, destaco aqui, inclusive, como a questão de gênero permeou todas as temáticas levantadas pelo estudo. As mulheres são as principais responsáveis pelos cuidados com as crianças menores de 5 anos, pois são elas que as alimentam, banham, levam ao médico para consultas e para vacinar, e ficam a maior parte do tempo apoiando-as em seu desenvolvimento cognitivo e físico. Mesmo quando a mãe também trabalha fora de casa, como a maioria dos homens entrevistados, é ela a responsável por redirecionar essa tarefa para outras mulheres – babás, irmãs, primas, avós e, em grande medida, as filhas mais velhas. Desde pequenas as meninas são incumbidas de cuidar das crianças pequenas da família, e isso inclui irmãos, primos e muitas vezes vizinhos mais próximos. Isso acontece mesmo quando são elas muito jovens ou quando na família a criança mais velha é um menino.  

Algumas pessoas entrevistadas, especialmente as moradoras de áreas mais urbanizadas, destacaram haver uma mudança, mesmo que tímida, da relação entre homens e mulheres quanto à divisão de tarefas domésticas e de cuidados com os filhos. Homens estariam cada vez mais apoiando as mulheres nestas atividades. Muitos disseram durante as entrevistas que estariam realizando mais atividades domésticas e ficando mais com as crianças, quando dispunham de tempo para tanto (o que para muitos é algo raro, às vezes realizado aos finais de semana), e que acompanhavam as esposas às consultas médicas desde a gestação até as consultas de rotina do bebê (embora os profissionais de saúde apontem que são as mulheres ainda que mais estão presentes nas consultas e participam de palestras informativas sobre saúde e cuidados com as crianças pequenas).

Paulo César Santos (c) Creative Commons
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A desigual divisão sexual de tarefas domésticas e com as crianças é ainda mais penoso para as mães solteiras. Algumas das entrevistadas disseram se sentir constrangidas por não ter o nome do pai no registro de nascimento da criança, o que as leva a não querer registrá-las. Sobre as mães solteiras, especialmente as mais jovens, recaem muitas responsabilidades e cobranças, muitas vindas da própria família, e não causa estranhamento que a entrevistada mencionada que chorou com a pesquisadora local seja uma mãe solteira responsável por cuidar de três crianças sozinha.

Por um lado, a covid-19 nos impossibilitou a nós, pesquisadores da Plan, ou aos pesquisadores locais, de realizar a pesquisa da forma como deve ser feita, isto é, no campo, observando ativamente as pessoas e suas vivências de perto ou como nos disse um dos entrevistados com pesar quando soube que a entrevista seria virtualmente: “como poderei ver sua alma, sem você aqui na minha frente?” Por outro lado, a pandemia nos permitiu facilitar para que alguns dos jovens entrevistadores angolanos pudessem experimentar uma nova atividade, a partir do aprendizado de novas metodologias e ferramentas de trabalho, apresentando-se assim não apenas como uma mão de obra mais preparada para organizações internacionais interessadas em apoiar projetos sociais no país, mas acima de tudo como pessoas conscientes e empáticas à situação e necessidades da população ao seu redor.