A maioria dos países adota há anos o censo demográfico como instrumento para conhecer as diferentes características de sua população, tais como distribuição de habitantes por gênero, cor e etnia. Além de fornecer este retrato estatístico, a realização periódica do censo também permite monitorar a composição da população ao longo dos anos, facilitando a identificação de grandes mudanças demográficas, como ocorreu no Chile entre os anos de 1992 e 2002.
No censo realizado em 1992, 10,3% da população chilena se autodeclarou indígena. Entretanto, tal porcentagem foi amplamente questionada à época, na medida em que o questionário aplicado considerou apenas as três etnias oficialmente reconhecidas: Mapuche, Aymara e Rapa Nui. Diante disso, os povos cujas etnias não foram contempladas no censo não compuseram as estatísticas, distorcendo a real dimensão dos povos indígenas no país andino.
Em 1993, depois de sancionada a Ley Indígena, cinco novas etnias passaram a ser oficialmente reconhecidas. No entanto, ao invés de registrar o aumento esperado, o censo realizado em 2002 apresentou uma redução no número de pessoas que declararam pertencer a alguma das oito etnias; após 10 anos, o Chile viu seus povos indígenas cair a apenas 4,6% da população.
O fato curioso é que no período compreendido entre ambos os censos não foram reportados quaisquer casos de genocídios, epidemias, migrações em massa ou outro fator que pudesse justificar tamanha redução em um curto espaço de tempo. Tal episódio passou a ser então reconhecido como um genocídio meramente estatístico.
O que levou a essa drástica redução, afinal?
Ao investigar a raiz do problema, conclui-se que seu fato gerador estava no modo de perguntar, ou seja, na formulação da questão aplicada pelo censo. Enquanto em 1992 a pergunta utilizada foi “se você é chileno, considera-se pertencente a alguma das seguintes culturas?”, em 2002 a questão foi modificada para “você pertence a algum dos seguintes povos originários ou indígenas?”.
O problema da alteração encontra-se no fato de que muitos povos indígenas possuem suas próprias definições sobre pertencimento que muitas vezes diverge da percepção do indivíduo sobre sua etnia. Portanto, podem existir pessoas que possuem ascendência indígena, seguem culturas e tradições indígenas, se reconhecem como indígenas, vivem dentro ou ao redor de comunidades indígenas, possuem as mesmas necessidades da comunidade a qual sentem pertencer, mas não são reconhecidos pelo povo como parte dele.
Mas qual é o problema do “genocídio estatístico”?
A questão indígena na América Latina é tratada com uma atenção especial pelos governos nacionais e organismos internacionais. Em termos de políticas públicas e garantias de direitos fundamentais, o conceito de “indígena” está mais diretamente relacionado ao sentimento de pertencimento do indivíduo à cultura e à etnia do que às determinações e regras de comunidades específicas. Nesse sentido, ao considerar os resultados obtidos no censo realizado em 2002, uma parcela significativa da população pode ter tido seus direitos mitigados ou, ainda, ter sido excluída de planejamentos e implementações de políticas públicas voltadas exclusivamente aos povos indígenas.
Considerando as implicações que possivelmente decorreram do resultado do último censo, a questão foi devidamente alterada para o censo realizado em 2012, de forma a abranger todos aqueles que se consideravam indígenas. Diante da pergunta “você se considera pertencente a algum povo indígena?”, 11,1% da população chilena assim se declarou. Contudo, é preciso destacar que devido a problemas metodológicos – exclusão de 10% da população da aplicação dos questionários – os resultados desse novo censo foram cancelados em 2014, voltando a viger aquele realizado em 2002.
O que podemos aprender com esse caso?
O caso do Chile não é o único registrado nesse sentido, mas ilustra perfeitamente as consequências que uma pergunta mal planejada pode trazer a uma pesquisa, seja ela censitária ou não. Antes de elaborar um questionário, um pesquisador precisa se preocupar, sobretudo, em conhecer bem o objetivo da pesquisa, a região na qual ela será aplicada e as características de seus entrevistados, pois caso contrário, o resultado obtido pode distorcer a realidade e as consequências podem ser irreparáveis.
Fontes:
http://www.ine.cl/canales/chile_estadistico/estadisticas_sociales_culturales/ etnias/pdf/estadisticas_indigenas_2002_11_09_09.pdf
http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=39334376
http://www.mapunet.org/documentos/mapuches/Ref_met_cen_1992-2002.pdf
http://blogs.iadb.org/y-si-hablamos-de-igualdad/2015/03/19/como-prosa-y-politica-pueden-reducir-la-poblacion-indigena/