Deixe-me adivinhar: você respondeu que pertence à classe média. Como é que adivinhei? Bem, as probabilidades estavam do meu lado, e em 3 das 5 alternativas é referido um sub-estrato médio; o fato de estar a ler este blogue também indicia que você tem um grau de instrução relativamente elevado – e vários estudos apontam que educação e renda estão correlacionados, etc.
Mas não, na verdade se acertei foi simplesmente porque a maior parte das pessoas acha que é de classe média. Isso deve-se a um viés inerente à autopercepção de classe que, como sucede por vezes com as percepções, nem sempre corresponde perfeitamente à realidade. No caso da percepção de classe, isto verifica-se no Brasil, na Argentina e até um pouco por todo o mundo.
Para ajudar a explicar este viés, podemos adaptar ligeiramente o conceito de Privação Relativa, que o sociólogo Robert K. Merton desenvolveu para explicar o desvio social. Neste sentido, a auto percepção de classe social depende sobretudo da posição social relativa às pessoas que cada um vê como mais próximos e tende a enviesar-se ainda mais por pensarmos popularmente a divisão de classes como pobres, classe média e ricos1. Por isso, é natural que alguém que esteja entre os 10% com mais rendimentos ache que não é realmente rico.
Até porque haverá sempre alguém que parece ter mais recursos que nós: “como é que eu posso ser considerado rico se eu nem tenho um helicóptero/não moro em uma cobertura/não troco de carro todos os anos/não moro em uma cobertura/não tenho um helicóptero/não tenho um jato privado/não tenho uma ilha/etc”. Da mesma forma, alguém que faça parte dos 10% mais pobres entre as pessoas que possuem rendimentos considerem que não são assim tão pobres porque “afinal sempre têm rendimento/ vão tendo comida na mesa/não moram na rua/etc”.
Entende-se, então, já agora, por que é que tanta gente se surpreendeu – e se indignou – quando a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) afirmou que, em 2012, do estrato médio (“classe média”) faziam parte as pessoas com renda per capita entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00 – talvez por isso, em 2014, a SAE passou a definir as classes a partir da renda domiciliar total.
Mas, apesar de pensar classes olhando apenas o rendimento é coisa de perturbar cientistas sociais por desconsiderar dimensões como status ocupacional, patrimônio e capitais social e cultural, por exemplo, a crescente difusão do termo Classe Média tem sido muito útil para o discurso político em todo o mundo: se toda a gente é classe média, dirigir a retórica seja para uma “classe média emergente” ou para uma “classe média que carrega o país nos ombros” tende a conquistar cada vez mais espaço aos temas clássicos como a educação, saúde e pobreza.
Como diria o britânico John Prescott: “agora somos todos classe média”.
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1. Na verdade, são estratos, definidos por renda, e não classes, definidas por posição na estrutura social, mas vamos adotar a linguagem corrente para facilitar o entendimento.