Racismo nas relações diárias – “benefícios discriminatórios”

Nos últimos meses, os Estados Unidos voltaram a debater fortemente a questão das discriminações de base racial. Esse retorno ao tema ganhou força a partir dos acontecimentos envolvendo ações policiais e jovens negros em diversos estados americanos que, inclusive, resultaram na morte de alguns deles. Em repúdio a esses acontecimentos, no final do ano de 2014, milhares de pessoas saíram em protesto em diversas partes dos EUA, argumentando que haveria por parte dos policiais e da justiça americana uma política discriminatória.

A argumentação dos manifestantes, assim como de uma parcela significativa da sociedade civil, acadêmicos, jornalistas e até mesmo alguns políticos, é que jovens negros seriam mais visados pela justiça do que jovens brancos: o simples fato de ser negro já colocaria os jovens em maior vulnerabilidade para serem alvos de ações policiais, independentemente de eles serem ou não culpados, ou seja, eles seriam mais propícios à abordagem policial e, quando abordados, reclamam de haver maior violência envolvida, além do que, diversas vezes, por princípio, são considerados suspeitos, ou até mesmo culpados de crimes que podem não ter cometido.

Um dos casos emblemáticos foi o que culminou na morte de Michael Brown, morto pelo policial Darren Wilson, em 9 de agosto de 2014, na cidade de Ferguson, periferia de St. Louis, Missouri. Segundo a versão oficial, o jovem foi morto após reagir a uma abordagem policial e ser atingido por sete tiros. Brown não portava armas e não possuía nenhum antecedente criminal. A abordagem foi feita após o policial ver semelhanças entre o perfil de Brown e o perfil descrito pouco tempo antes no rádio, de um jovem que roubará um centro de conveniências. Independentemente de Brown ser ou não culpado, o que se colocou em questão foi a forma violenta da abordagem. Wilson foi levado a júri, mas acabou inocentado.

Esse contexto de tensão racial criou espaço na mídia para discussões que já eram, de certa forma, consideradas ultrapassadas no contexto americano. Um interessante texto envolvendo essa temática foi publicado no dia 24/02/2015, no jornal The New York Times. No artigo “When Whites Get a Free Pass” (“Quando os brancos têm passe livre”), escrito por Ian Ayres, o autor traz um estudo realizado na Austrália, conduzido pelos economistas Redzo Mujcic e Paul Frijters, da Universidade de Queensland, no qual eles pensam a discriminação atualmente, com foco nos privilégios obtidos por brancos nas relações diárias.

Para a realização desse estudo, os pesquisadores treinaram um total de 29 jovens, negros e brancos, homens e mulheres, que deveriam embarcar em ônibus públicos na cidade de Brisbane e, ao passar o cartão de ônibus na catraca, o scanner fazia um barulho e avisava que não havia créditos disponíveis. Nesse momento, os jovens estavam orientados a dizer: “Eu não tenho dinheiro, mas preciso muito chegar até a estação X”. Todos os jovens citavam estações que estavam a distâncias semelhantes – a estação citada variava conforme o ponto de embarque.

Tendo feito mais de 1.500 observações, o estudo atestou, com relevância estatística, dados de discriminação: os motoristas de ônibus eram duas vezes mais suscetíveis a deixar pessoas brancas embarcarem de graça do que negros (72% contra 36%). A pesquisa aferiu também que mesmo quando os motoristas eram negros, os passageiros brancos foram favorecidos (83% dos casos versus 68%). Foram testadas também situações onde os jovens estavam vestidos como soldados ou em trajes sociais de trabalho: nesses casos, jovens brancos tiveram sucesso em 97% das tentativas, enquanto jovens negros tiveram sucesso em apenas 77% das vezes.

Estudos desse tipo, onde pesquisadores comparam o tratamento recebido por pessoas brancas e negras, não são novidades. O que é interessante nessa pesquisa é que os professores conseguiram perceber os privilégios recebidos por brancos nas relações diárias. Como Ian Ayres coloca, atualmente, é mais difícil ver pessoas em posição de autoridade negar direitos às minorias, mas é fácil visualizar cenários onde pessoas com poder de decisão em situações diárias como, por exemplo, os motoristas de ônibus, concebem privilégios aos que não se encaixam em grupos minoritários. Nesse sentido, “benefícios discriminatórios” são mais correntes do que propriamente “negações discriminatórias”.

Voltando aos casos dos jovens negros nos Estado Unidos, esse tipo de relação demonstrada pelos pesquisadores nesse estudo ajuda a compreender a revolta das minorias, que se sentem discriminadas em casos nos quais jovens brancos não seriam nem mesmo abordados. É como se os jovens brancos tivessem uma espécie de “passe livre” ainda que isso não seja algo consciente por parte dos policiais, ou até mesmo por parte daqueles responsáveis pela justiça criminal.

É interessante que o estudo demonstra que esse tipo de comportamento – “benefícios discriminatórios” – é pouco consciente. Após o período de campo, os motoristas foram abordados e solicitados a responder um questionário. Quando questionados, não houve diferenças estatisticamente significativas entre motoristas que deixariam jovens brancos ou negros embarcarem sem pagar.

Obviamente, há fatores culturais envolvidos nesse tipo de comportamento de leitura de fenótipo (cor ou “raça”), no sentido em que poderiam haver diferenças entre os resultados obtidos na Austrália, ou se o estudo fosse conduzido nos Estados Unidos ou Brasil, por exemplo. Porém, é interessante para pensar sobre as questões raciais, em especial a partir do enfoque de “benefícios discriminatórios”.
Como Ayres conclui, esse tipo de privilégio é difícil de ser erradicado, mas essencial de ser compreendido.

Link para acesso ao artigo de Ian Ayres: http://www.nytimes.com/2015/02/24/opinion/research-shows-white-privilege-is-real.html?_r=0

Uma resposta para “Racismo nas relações diárias – “benefícios discriminatórios””

  1. Acredito que devemos nos ater aos casos concretos no Brasil, o racismo não está relacionado tão somente as pessoas de pele parda ou negra, o preconceito contra credos religiosos, sexo, idade, determinada classe de trabalhadores, retenção de direitos em razão daquilo que alguém é.
    Adotamos e amamos animais, o s quais nos trazem companhia e felicidade, não adotamos pessoas ainda que fora de nossas casas, quem adotará um idoso? pagando um enfermeiro a uma família humilde, medicamento ao vizinho pobre e pretinho?! No auge de uma carreira brilhante cheia de sucesso não consegue auxiliar uma família a ingressar um estudante na faculdade. O dever é de todos e não só do Estado. Vamos para de deitar o pau no Estado e passemos a fazer nossa parte, a sociedade brasileira é fruto da nossa própria omissão

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