Incorporando a perspectiva de gênero em avaliações de políticas públicas e programas sociais e humanitários

Ao longo dos últimos três anos, atuando como especialista de estudos de gênero, eu fui convidada pela Plan Eval para participar de algumas pesquisas e avaliações que consideravam a perspectiva de gênero na análise e avaliação de intervenções sociais e humanitárias. Não obstante, participei de outras tantas avaliações que não faziam a incorporação desta perspectiva, mas que ao longo das análises ficava evidente que ao menos parcialmente esta incorporação poderia ser feita. O fato é que muitas das intervenções sociais e/ou humanitárias podem não fazer referência explícita, mas isso não significa que não tenham um impacto diferenciado por gênero em determinados grupos ou localidades, principalmente devido à desigualdade estrutural entre homens e mulheres ainda persistente na maioria das sociedades – dada as devidas especificidades regionais e/ou culturais, são as mulheres e meninas que continuam a sofrer os maiores impactos em situações de vulnerabilidade, como de grave crise econômica, violência e/ou conflitos armados, por exemplo. Dessa forma, segundo Medina (2021):

“incorporar a perspectiva de gênero implica considerar sistematicamente as diferenças entre mulheres e homens nas diversas esferas de políticas ou programas, com a vontade de identificar essas desigualdades e os fatores que as geram, torná-las visíveis, projetar e aplicar estratégias para reduzi-las e, assim, avançar para sua erradicação. Da mesma forma, significa abordar o estudo dos fenômenos sociais sem assumir a universalidade das experiências masculinas e também questionar o sistema sexo-gênero e suas implicações”.[1]

© UNHCR/Patrick Brown

Para a reflexão que proponho sobre este tema, compartilho algumas das avaliações que realizei no último ano, em 2022, que poderiam ter dado ênfase à questão de gênero desde a sua concepção, mas que não o fizeram explicitamente. Os dois projetos de avaliação que destaco foram solicitados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Brasil.

O primeiro, conduzido por uma equipe formada pela Plan Eval, tratou-se de uma avaliação de resultados sobre o Programa Acesso Mais Seguro (AMS), que visa reduzir e mitigar as conseqüências da violência armada sobre os serviços públicos essenciais, como educação, saúde e assistência social. O segundo, realizado de forma independente, fazia referência ao mapeamento das necessidades de comunicação das pessoas migrantes e refugiadas, especialmente da população venezuelana, atendida no âmbito da Operação Acolhida do governo federal, no estado de Roraima. Eram avaliações completamente diferentes entre si, tanto de escopo e estrutura, como de públicos alvos. Contudo, em cada uma havia evidências de que estas intervenções poderiam ter assumido a perspectiva de gênero, uma vez que eram as mulheres que estavam sendo impactadas de forma mais negativa e desigual pelos problemas que a organização procurava mitigar.

© Foto: UNFPA Brasil/Pedro Sibahi

O Programa AMS trabalhava em parceira, no momento da avaliação, diretamente com as secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social[2] de quatro municípios: Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Fortaleza e Porto Alegre. Por sua vez, o Programa era executado por profissionais que estavam na ponta dos três serviços referidos, como: diretores(as) de escolas, professores(as), médicos(as), dentistas, enfermeiros(as), agentes comunitários e assistentes sociais. Há pesquisas que mostram que as mulheres ocupam em maior número os serviços públicos de forma geral, atuando especialmente no atendimento direto aos usuários dos serviços, porém são minoria nos cargos de maior liderança e tomada de decisão[3]. Além desta desigualdade de gênero “vertical”, há também a desigualdade “horizontal”, quando há a diferença na distribuição de gênero em algumas carreiras específicas. São as consideradas “posições de cuidado”, como as das áreas de assistência social, educação e saúde, que são, historicamente, pior remuneradas, representando um abismo salarial entre os gêneros[4].

Esta intervenção que visa, entre outros objetivos, manter funcionando com segurança os serviços essenciais públicos em áreas de grande vulnerabilidade, passou a impactar a rotina de centenas de profissionais, especialmente que se identificam como mulheres, assim como tem potencial de impactar a vida de muitas beneficiárias/usuárias mulheres que dependem, por exemplo, quase que exclusivamente das escolas abertas para poder trabalhar. Esta afirmação baseia-se nos relatos dados por mães, e demais pessoas cuidadoras, durante os grupos focais realizados com as comunidades, nos quais 90% das pessoas participantes eram mulheres e se apresentavam como chefes de família ou como principais responsáveis pelas suas crianças[5].

Já no caso da avaliação das necessidades de comunicação da população migrante e refugiada em Roraima, havia desde o princípio a preocupação de se mapear as necessidades de subgrupos específicos como: pessoas indígenas; pessoas com deficiência; pessoas LGBTQIAP+; pessoas idosas; mulheres jovens e/ou mães solteiras. Mesmo sendo reconhecido pelas organizações humanitárias que atuam em parceria com o governo federal na Operação Acolhida de que a maioria das pessoas migrantes e refugiadas que entram por esta fronteira são homens, ao longo da avaliação ficou evidente que eram as mulheres – pertencentes a cada grupo específico citado – que tinham maiores dificuldades para se comunicar e conseguir informações sobre as ajudas humanitárias e sociais no país, ficando dependentes de companheiros, demais familiares, ou ainda, exclusivamente, de agentes externos (como no caso das mulheres solteiras com crianças pequenas).

Em ambas as avaliações, o que foi possível de se apresentar como resultado foi uma contextualização das desigualdades de gênero em cada cenário como parte do diagnóstico realizado, sendo ainda elaboradas algumas recomendações e sugestões específicas para que a perspectiva de gênero se fizesse mais presente e explícita nas intervenções propostas pela organização. Não obstante, havia outros passos que poderiam ter sido dados antecipadamente, os quais eu sugiro fortemente aos avaliadores e avaliadoras que me lêem ao se depararem com casos de avaliações que apresentem evidências irrefutáveis de desigualdade de gênero no contexto da intervenção em questão.

Guias práticos sobre avaliação com a incorporação da perspectiva de gênero, como o lançado pelo Instituto Catalão de Avaliação de Políticas Públicas[6], ou como os que foram elaborados pela ONU Mulheres[7], podem ser de grande valia para apoiar nesta tarefa. A seguir, aponto brevemente algumas das orientações destes guias para destacar o que pode ser seguido para que uma avaliação considere minimamente a perspectiva de gênero.

Perguntas iniciais

É conveniente levantar algumas perguntas iniciais, seja para realizar a avaliabilidade da avaliação de um programa ou política, seja para a análise prévia que se desenvolve na primeira parte de uma avaliação em qualquer âmbito de estudo. Tais perguntas podem ajudar a entender e classificar o enfoque de gênero de uma intervenção a partir das informações disponíveis. Elas podem ser como estas:

  • O programa coleta dados da situação inicial para os valores serem analisados? Estes dados são segregados por sexo?
  • Eles incluem informações sobre outros marcadores sociais, como etnia/raça, recursos econômicos, idade, escolaridade?
  • Há informações disponíveis sobre como mulheres e homens respondem e valorizam a intervenção?
  • O programa possui indicadores específicos de desigualdade de gênero e tem acompanhamento?
  • Durante a implementação da intervenção, houve um acompanhamento dos perfis das pessoas beneficiárias do programa?

Perguntas de avaliação

Perguntas de avaliação com foco em gênero são igualmente importantes e devem fazer parte da fase de planejamento metodológico da avaliação. Medina (2021) considera útil selecionar questões de avaliação concretas e projetadas para entender as diferenças de gênero e que vão além de considerar as diferenças entre mulheres e homens, como exemplo:

• Existem normas, práticas ou estereótipos de gênero relacionados aos fatores que a intervenção está tentando mudar? Quais seriam? Como eles afetam mulheres e homens?

• A intervenção visa ou consegue mudar essas normas, práticas ou estereótipos? De que modo?

• Existem perfis diferentes de mulheres e homens entre os usuários do programa? O efeito da intervenção difere entre esses perfis?

• Existe algum perfil de participante (especialmente mulheres e pessoas LGTBQIAP+) sub-representado entre a população beneficiária? Qual seria? Por quê?

• Existe algum perfil de participante (especialmente mulheres e pessoas LGTBQIAP+) sub-representado em algumas das atividades da política ou programa? Qual seria? Por quê?

• Em função do seu gênero, os(as) beneficiários(as) da política vivenciam de forma diferente sua participação no programa? Por quê?

Execução e análise

Ao longo do processo de avaliação, o que inclui a coleta de dados e a análise, a perspectiva de gênero pode se incorporada de forma bastante prática, a partir de ações como:

• Procurar levantar amostras representativas entre os gêneros masculino e feminino;

• Incorporar a voz de mulheres e de organizações feministas ou de afirmação identitária sempre que possível;

• Desagregar dados e fazer análises diferenciais, incluindo outros marcadores sociais sempre que possível;

• Analisar as implicações da política ou do programa em termos de gênero, levando em consideração a interseccionalidade com outros marcadores sempre que possível;

• Definir recomendações específicas sobre gênero para a intervenção;

• Garantir uma linguagem inclusiva e neutra na redação dos relatórios.

Por fim, a avaliação de políticas e programas sociais e humanitários, enquanto um exercício científico de levantamento de evidências, agrega em si um grande componente de aprendizagem que pode (e deve!) gerar novos conhecimentos e práticas, sendo assim visto igualmente como um importante apoio na promoção de mudanças mais amplas e profundas nas organizações e instituições, como na sociedade em geral. Incorporar a perspectiva de gênero nas avaliações, assim como de outros marcadores sociais, faz parte deste processo de aprendizagem para todos os envolvidos, o que requer paciência, é verdade, mas que não suporta mais postergação.


[1] MEDINA, Júlia de Quintana. Guía práctica 18: La perspectiva de género en la evaluación de políticas públicas. Instituto Catalán de Evaluación de Políticas Públicas (Ivàlua), 2021, p.21 (tradução livre).

[2] Apenas em Fortaleza o CICV apresentava parceria com as três secretarias no momento da avaliação. Em Porto Alegre e Duque de Caxias as parcerias eram com as secretarias de Educação e Saúde. E no Rio de Janeiro apenas com a Educação.

[3] De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 2022, as mulheres representam 57% dos profissionais no setor público, enquanto os homens são 43%. Contudo, os diretores e gerentes estão representados por 39% de mulheres e 61% de homens.

[4] HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa37, 595-609. 2007.

[5] De acordo com dados do Dieese de 2022, no Brasil, de 12,7 milhões de famílias monoparentais com filhos, 87% são chefiadas por mulheres e 13% por homens. Nos demais núcleos familiares, a diferença não é tão grande: 51% das famílias são chefiadas por mulheres. Das 11 milhões de mães solteiras e chefes de família, 62% são negras. Dentro desse subgrupo, 25% prestam serviços domésticos; 17% trabalham nos setores de educação, saúde humana e serviços sociais; e 15% no comércio. Entre as mulheres não negras, a proporção é praticamente inversa: 22% trabalham com educação, saúde humana e serviços sociais, 17%, no comércio e 16% com serviços domésticos (Boletim Especial de 8 de março – Dieese com dados do IBGE – PnadC, 2022)

[6] MEDINA (2021).

[7] Os guias da ONU Mulheres podem ser encontrados no site oficial desta agência: Guía de evaluación de programas y proyectos con perspectiva de género, derechos humanos e interculturalidad (2014); Manual de evaluación de ONU Mujeres: Cómo gestionar evaluaciones con enfoque de género (2015).

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